1. Durante a conferência ministerial da Comunidade das Democracias, que se realizou no passado fim-de-semana em Lisboa, houve um momento não-oficial, destinado à sociedade civil, que merece reflexão. O tema escolhido foi “governação democrática e diálogo intercultural”. Oradores convidados ─ o escritor franco-libanês Amin Maalouf; o presidente da Fundação Anne Lindh para o Diálogo entre as Culturas, o judeu marroquino André Azoulay; o director do Instituto para a Democracia na África do Sul, Paul Graham; e (via satélite) o antigo Presidente português Jorge Sampaio, que é hoje o representante do secretário-geral da ONU para a Aliança das Civilizações. Seguiu-se um intenso e talvez inesperado debate, que envolveu sobretudo representantes das ONG de muitos países onde a democracia é muito imperfeita ou, pura e simplesmente, inexistente.
Os oradores falaram do diálogo e o respeito entre culturas como o caminho que nos pode levar até à “globalização da humanidade” em torno de “valores comuns”. Como diz Maalouf, a uma “civilização comum”. Como diz Obama, a uma “humanidade comum”. As intervenções da audiência foram para interpelar as democracias sobre a sua responsabilidade de apoiar e de proteger aqueles que lutam pelos direitos democráticos nas condições mais adversas. No fundo, a questão que sobreveio foi como articular o respeito pela diversidade cultural e a universalidade dos valores fundamentais das democracias. Velha questão. Agora olhada à luz do “factor Obama”.
2. A Comunidade das Democracias, que hoje reúne mais de 100 países, foi uma iniciativa da administração Clinton, concretizada em Junho de 2000, quando a política externa americana assentava na ideia de que o fim da Guerra Fria abria as portas à integração dos mercados, facilitando a expansão da democracia. Houve naturalmente tremendas guerras provocadas pelo nacionalismo extremo (nos Balcãs ou no Ruanda). A questão das identidades emergia como reacção à globalização económica e cultural. O terrorismo da Al-Qaeda já se manifestara em diversos pontos do globo e o fundamentalismo islâmico assassinava gente nas praças de Cabul. Mas a ideia de que a democracia era um movimento irreversível e que seria útil dar às democracias pelo menos o peso de um lobby na ONU ainda fazia sentido. Era essa a ideia da Comunidade das Democracias.
A eleição de George W. Bush, com uma visão diferente do papel dos EUA no mundo, e, sobretudo, o 11 de Setembro haveriam de mudar tudo. A “agenda da liberdade”, como lhe chamou o anterior Presidente, ocuparia o centro da política externa americana de uma forma diferente: como uma espécie de missão da América, a única superpotência sobre a terra, ao serviço do seu interesse nacional. Formulada nestes termos no segundo mandato, esteve presente na justificação da guerra no Iraque e na estratégia de Bush para o Médio Oriente. Falhou rotundamente, como sabemos. Contribuiu para dar má fama à própria ideia de democracia ocidental. E, sobretudo, afectou mortalmente a reputação e credibilidade americana no mundo.
3. Hoje, a Comunidade das Democracias ainda não parece ter encontrado o seu papel. Os diplomatas que prepararam a conferência continuam à espera da última palavra de Washington. Há um debate interno à própria Administração americana sobre qual a ênfase que deve ser dada à questão da democracia na nova política externa de Obama.
Na verdade, o Presidente já respondeu a esta questão. Basta ler com atenção os seus discursos fundamentais. De Praga ao Gana, passando pelo Cairo e por Moscovo.
Mudaram os termos em que a questão da democracia é colocada. Obama fala do respeito pelos outros, pelas suas culturas e pela forma específica de organizarem as suas sociedades. Mas fala também dos valores que são comuns a toda a humanidade. “A possibilidade de falar à vontade e ter uma palavra na forma como se é governado; a confiança na lei e na justiça equitativa; o direito a uma governação transparente que não roube ao povo a liberdade para seguir a sua própria vida. Estas não são ideias americanas, são direitos humanos. E é por isso que as apoiamos em toda a parte” (Cairo). “A América defende estes valores em toda a parte porque são morais, mas também porque funcionam” (Moscovo). “O desenvolvimento depende da boa governação. De governos que respeitem a vontade dos seus povos, que governem por consentimento e não por coerção” (Gana). Mas também disse que nenhum país se deve arrogar o direito de impor o seu modelo de governação aos outros. Em suma, a América tem de voltar a liderar pelo exemplo.
4. Regressemos ao debate em Lisboa. Foi o “sobressalto político” que constitui a eleição de Obama que “começou a repor a honra da democracia ocidental”, disse Amin Maalouf. André Azoulay falou da “credibilidade reencontrada do Ocidente” e “dessa nova luz que começa a ganhar intensidade a partir do discurso do Cairo”. “Estávamos mergulhados numa espécie de abismo, na vaga esperança de que um líder ocidental se exprimisse e nós pudéssemos ver aí respeito.” O que é mais extraordinário é que esse líder é o Presidente americano e foi escolhido pelos americanos.
Azoulay argumenta que a democracia não pode ser “clonada”. Mas há ainda presos políticos em Marrocos e no Cairo. “Há em toda a parte uma grande aspiração à democracia”, disse Maalouf. Mas há por toda a parte atropelos a essa aspiração.
O que há de novo na resposta de Obama a este dilema é que ele fala à inteligência das pessoas e compreende o seu ponto de vista. “As suas palavras são verdadeiras e são novas.” Permitem “reconquistar a razão”. Integram “diversidade e abertura”, diz Azoulay.
As pessoas perguntaram: o que é que o Ocidente pode fazer?
Provar que a “humanidade comum” pode existir dentro das suas sociedades. É um repto tremendo para a Europa, disseram Maalouf e Azoulay. Que se joga na capacidade de integrar os imigrantes e na questão da Turquia.
É um grande desafio para o Ocidente. “Ajudar de forma espectacular os países que escolheram a democracia”, sugeriu o grande escritor franco-libanês. “Um sistema internacional em que os direitos universais das pessoas sejam respeitados e as violações desses direitos denunciadas. E isso inclui o compromisso em apoiar aqueles que resolvam os conflitos pacificamente, sancionar e travar os que não o façam, e ajudar aqueles que sofreram.” Obama em Acra. As peças começam a encaixar no único caminho para uma “humanidade comum”.
Fonte: PÚBLICO
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