terça-feira, 11 de agosto de 2009

«A Ministra»: Uma sátira magnífica

Nestas férias, aproveitei para ler vários livros, entre os quais um que foi publicado recentemente, intitulado ‘A Ministra’, de Miguel Real, um autor já com mais obras publicadas.

Esta obra centra-se numa personagem feminina que recebeu uma convite, dois dias antes do Natal, para integrar o Governo. A putativa ministra recorda então o seu passado, a tragédia que se abateu sobre os seus pais, a sua vida com o tio-pai e a tia-mãe, a infância «perturbada pela ausência do tio-pai em casa, sargento da Guarda Nacional Republicana» e a sua ida para o Orfanato («albergue de meninas exclusivamente até aos dezoito anos» ― pág. 19), depois da morte do seu tio-pai.

Começa a ser mais clara a caraterização da personagem principal a partir da página 20:

«Tenho consciência de que nunca possuí uma ideia original, nunca escrevi uma página original nem nunca dei uma aula original, saco as ideias de relatórios europeus e, trabalhando as estatísticas, apresento-as como próprias, o que não chega a ser plágio, antes transferência e circulação de ideias no espaço europeu, aclimato as ideias europeias a Portugal, todos os meus estudos de sociologia obedecem a uma mesma matriz: se se aliviassem os obstáculos sociais à realização de certos índices, Portugal acederia de imediato à modernidade; dava invariavelmente como exemplo a eliminação das estatísticas dos produtores individuais de batata; se só se contabilizassem as grandes produções batateiras e as cooperativas de agricultores, Portugal encontrar-se-ia, sem dúvida, ao nível da Alemanha, apenas um prurido de rigor estatístico, provindo de directores-gerais de mentalidade arcaica, educados no escrúpulo inflexível do antigo regime, forçava que constasse das estatísticas nacionais a produção caseira de um lavrador que semeia batatas para si, para duas ou três mercearias da freguesia e dois ou três restaurantes de beira de estrada; tudo o que fosse pequeno seria implacavelmente eliminado das estatísticas, colocando-se patamares mínimos de acesso, apenas atingíveis, evidentemente, a partir da média de produção europeia; na educação, dava como exemplo a eliminação dos obstáculos curriculares à integral passagem de ano dos alunos, a taxa de 40% de chumbo e retenção passaria para 10% em três ou quatro anos, bastaria forçar os professores a baixarem as exigências programáticas, a facilitarem o nível dos testes e dos exames e obrigá-los a darem aulas sem conta até que os alunos mais burros memorizassem o mínimo de matéria suficiente para um três ou um dez ― passaríamos de país mais bronco da Europa para país escolarmente aplicado. Almas pudicas, de ética cristã, clamavam por manipulação de dados e artificialismo de resultados, garantindo que se caminhava para uma sociedade de idiotas, desprovida de espírito e de cultura, a que eu, seráfica, respondia ser apenas agilização de procedimentos tendo em conta a eficácia social, que não se compadece com agricultores semeadores de meio hectare de batata e com estudantes sábios sobre a origem do Sistema Solar e os sonetos de Camões para se tornarem óptimos canalizadores, serralheiros ou electricistas, aliás, desabafei por vezes em voz triunfante, mais depressa um canalizador se encarta em Camões ou em astronomia através da Internet do que na escola básica ou secundária.

Miguel Real, A Ministra, Quidnovi, Matosinhos, 2009, pp. 20-22

«Voluntariosa e esforçada» (p. 24), lutando contra as «amarras de ferro» (p. 26) para impor a sua «vontade de aço» (p. 26), sente que o telefonema recebido é uma recompensa pelo seu trajecto. No entanto, apercebemo-nos de que se trata de uma pessoa desprovida de sentimentos, «imune às emoções » (p. 29), pois afirma: «não criam eco dentro de mim as lamúrias dos pobrezinhos, se o são é porque o merecem ser, a pobreza em Portugal, com um milhão e meio de reformados só se vence pela morte destes (…).» (pp. 26-27)

«Orgulhosa do buraco de infortúnio» (p. 27) que foi o seu passado e de como, «com denodo» (p. 27), dele se livrou, «sonhar, fazer castelos no ar» (p. 27), não é consigo. Sublinha que luta e sabe por que luta e que e isso lhe dá vontade de viver, «não optimisticamente, como um pateta alegre, mas com o afã necessário para superar quaisquer obstáculos» (p. 27) O que lhe sacode a vida é «a acção, acção concertada segundo um plano sistematizado de vitórias (e derrotas) até ao triunfo final» (p. 27), que foi, sem dúvida, o telefonema recebido dois dias antes do Natal.

Criando grandes expectativas acerca do cargo governativo que iria desempenhar, «aproxima-se do espelho e encena o telefonema que fará no dia seguinte:

Sim, senhor Primeiro-Ministro, muito me honra o convite de V. Ex.ª. A seu lado, sob as suas ordens, terei o privilégio de ser Ministra da Educação.» (p. 131)

Como acabará a história? Nada como ler esta novela, bem recebida pela crítica, como esta publicada na revista Notícias Sábado’:

Sátira admirável e fundamental

Miguel Real agitou as letras portuguesas com A Ministra

Em todos os tempos encontramos admiráveis sátiras e metáforas da condição humana, dos comportamentos individuais e colectivos, dos movimentos sociais, políticos e culturais. Miguel Real, no seu novo livro A Ministra, vem agitar as letras portuguesas ultimamente menos dadas ao exercício de uma ficção (fundamental) que assuma um olhar largo e actuante, uma lúcida e firme critica em relação à maneira como anda (ou desanda) a vida dos povos. Nessa linha, recordamos, entre outros, a importância de escritores como Eça, Ramalho Ortigão ou O’Neill.

Depois de noutros dois livros (Memórias de Branca Dias e O Último Minuto na Vida de S.) haver urdido, respectivamente, uma mulher do século XVI, perseguida pela Inquisição, e a paixão entre uma intelectual e um político, no século XX português, Miguel Real tomou para esta novela uma personagem perturbadora, seca de emoções, talvez «seca de amor» a partir do dia em que a mãe por amor morrera. Uma mulher que, por estranha natureza, «decapitava bonecas» em criança e na faculdade desenhava «professores capados». Chamavam-lhe a Encolhidinha. Com as «artes de encolhimento» levava a água aos seus interesses. Usava quem lhe fosse útil para subir degraus, depois largava, humilhava, como acontecera ao marido.

O «tipo literário» que Miguel Real cria para este livro é do género feminino, mas também existe no masculino. Convidada para ministra da Educação nas vésperas de Natal (ambição frustrada, solidão total), a própria protagonista considera-se uma «(...) personalidade maquiavélica, mas, verdadeiramente, não mais maquiavélica do que a generalidade dos restantes que atingem altos postos de responsabilidade (...).»

A meu ver, torna-se irrelevante associar à personagem o nome de A ou B... A obra de Miguel Real tem uma dimensão superior ao caricaturar paradigmas do mundo contemporâneo. Fá-lo por meio de alguém auto-suficiente (mesmo na sexualidade), criatura sedenta de poder absoluto, inflexível, severa consigo, marcada pela educação recebida dos tios que a acolheram depois de o pai ter assassinado a mãe por ciúmes, no Algarve, violência que presenciou aos 4 anos. «O único defeito da tia-mãe» era «espetar-me bofetadas (...) a torto e a direito», então «gritava furiosamente pela mãe». E o tio-pai dera-Ihe um conselho nunca esquecido: «Corre para o lado da direcção do vento.»

Uma educação sem horizontes foi ainda a que teve no orfanato a cuja directora os alunos chamavam Cavalgadura. Superou-a. Chegou a catedrática de Sociologia das Estatísticas. Não deixa de se lhe reconhecer trabalho, todavia firmado num espírito «frio e monocórdico» obcecado pela tecnocracia. Sublinhe-se entretanto o modo como Miguel Real elabora o enfoque satírico no ensino: o realismo do presente e a assustadora projecção feita pela personagem para o século XXI (que «deveria ser governado exclusivamente pelos números») não impedem uma aguda ironia à volta de outros modelos educacionais (antigos ou próximos).

Refira-se igualmente a forma magistral como o autor retrata nesta novela os núcleos familiares e o jogo conflitual, numa escrita intensa, sensível, esteticamente perfeita, a que já nos habituou em romances como a A Voz da Terra ou O Último Negreiro.

MARIA AUGUSTA SILVA

Notícias Sábado’ 186 | 1 de Agosto de 2009

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