O que está em causa
Nunca foi tão marcada a diferença entre as duas propostas políticas entre as quais se decidem as eleições parlamentares
Provavelmente, ao contrário da opinião dominante, nunca foi tão marcada a diferença entre as duas propostas políticas entre as quais se decidem normalmente as eleições parlamentares entre nós, a saber entre o PS e o PSD. De um lado, a visão liberal-conservadora que o PSD de Ferreira Leite perfilha de modo exemplar, culminando a viragem “laranja” para a direita. Do outro lado, a visão social-progressista, que o PS de Sócrates pratica de maneira consistente, consolidando a modernização da esquerda democrática em Portugal.
A diferença é evidente em todos os planos. Desde logo, na esfera económica, como se mostra na questão do papel dos investimentos públicos na dinamização da economia. Depois, na esfera social, porventura onde o fosso mais se tem aprofundado, em virtude da deriva neoliberal do PSD e da aposta do PS na sustentabilidade dos três pilares clássicos do Estado social, designadamente o sistema de segurança social pública, o serviço nacional de saúde e a escola pública. Por fim, na concepção da liberdade e a autodeterminação individual, onde a diferença também se tem reforçado, mercê da posição retintamente reaccionária da actual líder do PSD em matéria de família e do sólido compromisso do PS com os novos valores acerca da emancipação individual.
Consideremos em especial esta terceira linha divisória entre a direita e a esquerda, tanto em Portugal como noutros países. Ela passa pela representação laica ou religiosa da família, pela amplitude do reconhecimento do divórcio como solução para casamentos falhados, pela admissão ou não de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, pela garantia ou não da procriação medicamente assistida, pela despenalização ou criminalização do aborto dentro de certo prazo de gravidez, pelo reconhecimento ou não do direito a uma morte digna. É manifesto que existe uma enorme diferença civilizacional entre quem defende dogmaticamente que “o fim do casamento é a procriação” ─ como declarou Ferreira Leite ─ e quem defende que o casamento é um compromisso aberto de felicidade pessoal entre duas pessoas, sujeito às vicissitudes da vida.
Por conseguinte, do resultado das próximas eleições não depende somente a consolidação ou o requestionamento da despenalização do aborto e do fim do divórcio litigioso ─ reformas realizadas na legislatura que agora finda, com a posição do PSD ─, mas também o reconhecimento ou rejeição do casamento de pessoas do mesmo sexo e a possível abordagem legislativa da legitimidade da eutanásia em determinadas circunstâncias, ambas questões que a direita em geral rejeita.
A recente decisão do Tribunal Constitucional que não declarou inconstitucional ─ como pretendia uma orientação mais radical ─ a tradicional reserva legal do matrimónio para as pessoas de sexo diferente, mas que deixou em aberto igualmente a legitimidade constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo ─ como sustenta a orientação doutrinal dominante ─, veio colocar nas mãos do legislador, ou seja, da maioria parlamentar, a decisão da questão, defraudando as esperanças daqueles que gostariam que o Tribunal Constitucional tivesse encerrado o assunto num ou outro sentido. Isso quer dizer que a maioria política que resultar das próximas eleições será decisiva para a solução de um tema que transita da legislatura ora finda, por o PS se ter recusado (aliás, bem) a aprovar precipitadamente a proposta de lei apresentada pelo BE, em virtude de uma questão tão polémica como essa não ter feito parte de nenhum programa eleitoral até ao momento. É evidente que a vitória das forças políticas que defendem a extensão da noção de casamento ─ e ela agora constitui um compromisso do PS ─ abrirá o caminho à sua aprovação.
Engana-se quem pensa que é um facto consumado uma pretensa convergência entre os dois grandes partidos de governo entre nós. A recessão global mostrou que era ilusório o aparente consenso sobre a ordem económica baseada na economia de mercado, na liberdade económica e na crescente ausência do Estado. A perda de fôlego da ideologia neoliberal evidenciou que o Estado social não está condenado nem sequer é obrigatória a sua substituição por um “Estado-garantia”, reduzido quando muito ao papel de financiador de esquemas privados de prestação de serviços sociais no mercado. As novas questões civilizacionais tornaram manifesto que a divisão entre a direita e a esquerda não cessa de se reproduzir à medida da sensibilidade de cada época.
Numa “democracia de partidos”, como é a nossa, as eleições são simultaneamente o mecanismo pelo qual os eleitores escolhem o partido que pretendem que governe e sufragam as suas propostas políticas. Por isso, não se trata simplesmente de optar entre candidatos a chefe de governo mas também entre políticas alternativas. Mesmo que as eleições não seja equiparáveis a um referendo global sobre programas eleitorais ─ pois o referendo supõe a resposta isolada a uma certa questão política sem envolver escolhas pessoais ─, muito menos são plebiscitos pessoais.
Para o bem e para o mal, são as eleições que legitimam certas opções políticas e rejeitam outras, ainda que muitos eleitores só de forma muito difusa se apercebam delas. Pese embora a crescente pessoalização das escolhas eleitorais, no final são os partidos políticos e os seus compromissos políticos que saem vencedores ou derrotados, conforme as circunstâncias.
Professor universitário. Deputado eleito para o Parlamento Europeu pelo Partido Socialista
Fonte: PÚBLICO [04.08.2009]
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