sábado, 17 de julho de 2010

OPINIÃO > Vasco Graça Moura: «Dá-se um doce e mais um...»

Dá-se um doce e mais um…

Se o Estado entende salvaguardar o que considera representar uma determinada vantagem estratégica no tocante a uma empresa, deve explicitar fundamentadamente qual é a estratégia em questão e deve adquirir nessa empresa a quantidade de capital necessária e suficiente para influenciar o desfecho das votações em assembleia geral.

O Estado pode com certeza identificar um dado sector como estratégico e tomar medidas para acautelar os interesses nacionais que assim tenha qualificado. Mas não pode nem deve distorcer as regras de livre funcionamento do mercado e da concorrência, a pretexto de que detém uma golden share, isto é, uma diminuta percentagem de capital que lhe permita bloquear a vontade da maioria a seu bel-prazer. Foi à evidência disto tudo que Passos Coelho se referiu em Espanha e as considerações que fez não lesaram nem lesam nenhuma espécie de interesse estratégico de Portugal ou qualquer outro.

Mas tanto bastou para que o primeiro-ministro y sus muchachos pusessem os olhos em alvo e não escapassem, nem ao ridículo nem à estupidez. O ridículo foi uma gente pernóstica, sem estatuto, sem qualidade e sem nada no sítio, ter-se armado assim em Nun'Álvares de trazer por casa, desatando a espadeirar e a vociferar dislates contra o PSD; a estupidez foi nenhuma dessas criaturas ter percebido que é preciso dessacralizar quanto antes as golden shares para sossegar eventuais investidores estrangeiros.

Tenho uma ideia de que, ainda há poucos meses, os interesses espanhóis andavam assaz substanciosamente defendidos pelas conspícuas posições do Governo português no tocante ao TGV. Mas agora mais uma vez funcionou a táctica do funil: o PS, o Governo, o primeiro-ministro e a sua versátil tropa-fandanga dão-se aos ademanes e piruetas do costume e ora utilizam a parte larga, ora a parte estreita dos princípios e dos pontos de vista, consoante as suas conveniências imediatistas.

Como se isto não bastasse, tivemos na semana passada, da parte do Governo, um extraordinário desfiar de explicações, desculpas, subtilezas e evasivas a propósito da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia que considerou ilegal o expediente de recurso à golden share no caso que opõe a PT à Telefónica. Mais parece que, em vez de se estar num Estado de direito, se capricha em viver num Estado do expediente, da fraude à lei e da esperteza saloia e se tem muita honra nisso. Segundo o Público de 9 de Julho, o ministro da Presidência chegou mesmo a defender que a de- cisão do Tribunal de Justiça "não produz qualquer alteração em concreto da realidade"!

Para algumas psitáceas oficiais ou oficiosas, o importante não parece ser o facto de ter sido proferida uma decisão judicial que tem de ser cumprida, mas antes encontrar maneiras de mostrar publicamente que ela não precisa de sê-lo ou, pelo menos, que não precisa de sê-lo tão cedo, pelo que acabará por não produzir efeitos no caso concreto. Com esta reconfortante perspectiva todos esfregam as mãos e este jardim à beira-mar plantado pode respirar em sossego, na sua inconsciência, na sua irresponsabilidade e na sua crónica e bronca iliteracia… O que interessa afinal é a batota: não que o Estado detenha uma maioria de acções no capital de uma empresa que considera estratégica, mas que chegue ao resultado que pretende pela lei do menor esforço e do menor custo.

Esta foi a imagem confrangedora que o Governo deu, com aplauso da esquerda e até de alguma direita, uma e outra sensíveis a palrações patriotinheiras, das tais que poderão dar dividendos populistas a curto prazo mas saem excessivamente caras logo a seguir. Para a esquerda, tudo o que prejudique o funcionamento do capital de uma empresa é oiro sobre azul. Para a direita, tudo o que cheire a vagalhões de Pátria em fúria, é o melhor que há. E para o primeiro-ministro, as objurgatórias e invectivas contra o "neoliberalismo" traduzem este propósito patético, talvez mui arreganhadamente esquerdista e patriótico, mas sem qualquer dúvida deveras tonto e singular, de por via financeira Portugal controlar noutro país, o Brasil, uma grande empresa brasileira de telecomunicações.

Dá-se um doce a quem conseguir demonstrar que isso não é neoliberalismo puro, duro e atolambado. E dá-se outro doce a quem conseguir demonstrar que esse é realmente um interesse estratégico de Portugal.

Fonte: Diário de Notícias [14.07.2010]

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