terça-feira, 13 de julho de 2010

Dois livros preservam falares à moda do Porto

Dois livros para preservar a língua colorida que cá temos no Porto

Sabe o que é um morcão? Uma trolitada? Um calhau com dois olhos? Encher-se de moscas? Se respondeu negativamente, não é do Norte, carago. Mas nem tudo está perdido. Dois livros lançados recentemente podem ajudá-lo a sobreviver a qualquer eventual incursão na terra do cimbalino.

Por Jorge Marmelo

Se o Porto é uma naçom? É consoante. Mas, derivado de certas peculiaridades do português que aqui se fala, pelo menos dois livros, nos últimos meses, procuraram fazer um levantamento de algumas expressões e palavras características da cidade e da região ao seu redor. Heróis à Moda do Porto, o primeiro a surgir, atingiu os tops de vendas. E já este mês chegou às livrarias Porto, Naçom de Falares, do jornalista Alfredo Mendes. Não são propriamente exercícios de linguística ou de antropologia da língua, mas servem para demonstrar que o Porto tem um vocabulário que manda ventarolas e que continua a suscitar interesse.

Entre-se no Mercado do Bolhão num dia qualquer (a passada quinta-feira, por exemplo). Não será preciso andar por lá muito tempo para escutar duas clientes que, falando uma com a outra, se queixam de que um determinado comerciante é "muito trafulha". Mais adiante, até um marmanjo de quase 40 anos se vê transformado em "freguesinho". Mas basta, afinal, andar no moderníssimo metro para, à hora de almoço, ouvir o condutor avisar "o animal" (em Lisboa, chamam-lhe "emplastro") de que o segurança vai entrar para lhe acertar o passo — pô-lo na ordem, ou lá o que é.

O falar à moda do Porto, sem querer estar a armar ao pingarelho ou a arrotar postas de pescada, distingue-se basicamente por peculiaridades fonéticas (o famoso sotaque, que pode ser mais ou menos acentuado), pela utilização benévola do palavrão e pela invenção de palavras e expressões curiosas. Se o sotaque tripeiro tem sido objecto de inúmeras apropriações artísticas, do personagem José Esteves, de Herman José, aos mais recentes locutores do Telerural, passando pelas canções do Trabalhadores do Comércio, os dois livros recentemente lançados incidem sobretudo sobre as palavras e expressões próprias do vocabulário regional.

Património imaterial

"São palavras que vão desaparecendo e que são um património imaterial precioso, colorido", explica Alfredo Mendes, o autor de Porto, Naçom de Falares. A língua, diz, "está a ser normalizada e padronizada pelas televisões, por essa espécie de lisboetês que falam os locutores e os actores".

Há cerca de trinta anos, e sem nenhuma pretensão, Alfredo Mendes começou a coleccionar palavras e expressões que escutava nos locais onde se deslocava enquanto jornalista. "Tomava notas em papéis, nos guardanapos dos cafés", recorda. A obra foi, assim, crescendo por brincadeira e às mijinhas, para utilizar uma das 1735 expressões que Alfredo Mendes recolheu, e só passou a existir realmente quando o editor de um livro que dedicou ao café Piolho lhe perguntou se tinha mais alguma coisa que quisesse ou pudesse publicar. "Lembrei-me que tinha isto lá em casa", remata.

O livro inclui, para além do avantajado glossário, pequenas histórias ilustrativas do modo de falar da cidade e ainda um conjunto de notas biográficas sobre personagens curiosas e célebres, do Duque da Ribeira à Badalhoca das sandes de presunto, passando pelo boavisteiro Zé do Laço.

Bastante diferente foi o processo que levou à criação de Heróis à Moda do Porto, um livro que inclui um conjunto de contos clássicos (a Branca de Neve, por exemplo) contados ao jeito tripeiro. João Carlos Brito, editor e linguísta, encontrou num grupo de alunos de uma oficina de escrita criativa mão-de-obra ao preço da uva mijona e, para além do trabalho criativo, construiu um glossário com cerca de 450 expressões e palavras típicas daquilo a que ironicamente designam como o portoguês.

O livro já vendeu mais de dez mil exemplares e transformou-se num "fenómeno curiosíssimo", ao ponto de a editora Lugar da Palavra ter lançado também uma obra semelhante com sotaque alentejano. "É uma forma de, sem perder a qualidade académica, defender o património linguístico com algum humor, preservando a língua", considera João Carlos Brito.

Bué e tótil

Alfredo Mendes concorda: "Em vinte anos, há palavras e expressões de que já ninguém se lembra e que quase ninguém usa. Algumas são expressões que vieram do Português arcaico, do século XIV, ou que vieram do Douro e de Trás-os-Montes. Mas as pessoas convenceram-se de que é parolo falar assim".

João Carlos Brito recorda, a propósito, um teste que realizou com alunos do segundo ciclo com as palavras "tótil" e "bué", sinónimos populares e juvenis de "muito". "No Porto, há vinte anos, dizia-se tótil e em Lisboa, por causa da influência africana, bué. Hoje o tótil desapareceu e aqui no Porto diz-se bué tótil de vezes", graceja. "As distâncias, que antes ajudavam a preservar as especificidades, esbateram-se e hoje, com os chats na Internet, aquilo que se diz no Porto diz-se também, segundos depois, no resto do país", acrescenta para ilustrar a normalização que vai atingindo a língua.

As palavras, diz o povo, "leva-as o vento". "Mas a estas palavras isso já não acontecerá, ficam fixadas no livro", argumenta Alfredo Mendes. Não menos importante, a adesão do público a livros como Heróis à Moda do Porto demonstra que as pessoas ainda se interessam pelo assunto e gostam de reencontrar as suas origens também no que à língua diz respeito. "A capital caricaturiza tudo aquilo que é diferente e isso gera um complexo de inferioridade. Mas estes trabalhos ajudam a esbater esse preconceito. Se as palavras estão num livro, então talvez já não sejam parolas", reflecte o jornalista, convencido de que Porto, Naçom de Falares também se pode transformar num sucesso de vendas.

O fenómeno é também explicado por João Carlos Brito, segundo o qual existe no Porto, como talvez em mais lado nenhum, uma "identificação das pessoas com a sua cidade e a sua língua, um orgulho muito grande". "De forma indirecta, o livro promove um reencontro das pessoas com as suas raízes e é muito curioso que o epicentro das vendas dos Heróis à Moda do Porto tenha sido o Porto, enquanto o livro do Alentejo vende muito mais em Lisboa", revela.

Haverá, claro, quem não aprecie expressões como "gostar do bafo no cachaço", "via de serventia" ou "andar à mama", mas, a esses morcões, será melhor mandá-los encherem-se de moscas. Como o texto já vai grande à fartazana, trataremos agora de dar corda aos vitorinos e ir tratar de outra vida.

Fonte: PÚBLICO

Nenhum comentário: