Rentrée
A floresta Camões desbravada
20.08.2010 — Luís Miguel Queirós
Na Caminho, a obra de referência que faltava aos estudos camonianos: o “Dicionário de Luís de Camões” vem preencher uma lacuna histórica
Há muito que se fazia sentir a falta de uma obra de referência que fornecesse uma súmula actualizada do vasto e diversificado território dos estudos camonianos. Mais de quatro séculos decorridos sobre a morte do autor de “Os Lusíadas”, o “Dicionário de Luís de Camões”, que a Caminho pretende publicar ainda este ano, vem colmatar esta notória lacuna. Coordenado por um camonista de incontroversa autoridade, Vítor Aguiar e Silva, o volume terá mais de um milhar de páginas e incluirá colaboração de cerca de 60 especialistas portugueses e estrangeiros.
Autor de várias obras fundamentais sobre o poeta e respectiva obra — incluindo “Camões, Labirintos e Fascínios” (1994), “A Lira Dourada e a Tuba Canora: Novos Ensaios Camonianos” (2008) ou o recente “Jorge de Sena e Camões”, além dos muitos estudos que, há décadas, vem dedicando aos problemas relacionados com a fixação do cânone da lírica camoniana —, Aguiar e Silva está convencido de que este dicionário “irá permanecer durante muitos anos como um marco nos estudos camonianos”.
Se o núcleo do volume é, naturalmente, a própria obra de Camões, incluindo a lírica, a épica, o teatro e a epistolografia, a planificação concebida por Aguiar e Silva dá também grande importância ao campo literário português da época em que Camões viveu — autores como Sá de Miranda ou António Ferreira, entre outros, tiveram direito a verbetes individuais —, bem como aos grandes movimentos culturais do tempo: o maneirismo, o renascimento, o humanismo.
Outro tópico que o coordenador privilegiou foi a recepção de Camões nas principais literaturas, como a espanhola, a galega (que mereceu tratamento autónomo), a francesa, a inglesa, a alemã ou a russa. Já a presença de Camões na literatura portuguesa foi extensivamente considerada, desde o século XVI aos vários modernismos, com entradas próprias para o modo como cada uma das sucessivas épocas lidou com a herança camoniana.
Entre muitos outros temas, é ainda dado particular relevo à relação de Camões e da sua obra com outras artes, como a música, a pintura ou a escultura. E os camonistas actuais que colaboraram no volume não esqueceram os seus mais ilustres predecessores, dedicando artigos a figuras como Wilhelm Storck, Carolina Michaëlis, Teófilo Braga, Costa Pimpão, José Maria Rodrigues ou Hernâni Cidade.
Algumas entradas são inesperadas, mas nem por isso menos justificadas, como a que trata especificamente das comemorações do tricentenário de Camões em 1880, que desempenharam um papel fulcral na mobilização republicana durante a monarquia e contribuíram para consolidar o então ainda incipiente Partido Republicano Português.
Aguiar a e Silva sente-se particularmente satisfeito por ter conseguido a colaboração de todos os autores que contactou, quer portugueses, quer estrangeiros. E realça especialmente a vitalidade e a qualidade dos estudos camonianos no Brasil, onde novos valores, como Márcia Arruda Franco ou Sheila Hue, vieram juntar-se a Leodegário de Azevedo Filho, Gilberto Mendonça Teles e outros consagrados especialistas na obra de Camões.
A pertinência de um dicionário como este é tão evidente que o que causa mais estranheza é que só agora venha a ser publicado, tanto mais que a Caminho já editara obras congéneres dedicadas a autores como Camilo, Eça ou Fernando Pessoa. Aguiar e Silva avança uma possível explicação para este atraso, que atribui à própria complexidade das questões que o poeta e a sua obra colocam. “Penso que é o problema mais complexo da literatura portuguesa, aquele que requer maior especialização”, diz o ensaísta, lembrando que os estudos camonianos “existem desde o final do século XVI”, que se foram “acumulando muitas interpretações” e que “Camões é uma floresta muito mais intrincada do que Pessoa”.
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