quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A propósito de divórcio...

Divorciei-me duas vezes e casei três, nenhuma delas pela Igreja. Isto significa, a meu ver, três coisas: uma, que não sou católico; duas, que vejo o divórcio como a forma natural e civilizada de pôr termo a casamentos acabados; e, três, que, apesar de tudo, continuo a acreditar no casamento. Mas nada disso me impede de discordar com veemência da nova Lei de Divórcio, feita aprovar pelo PS com votos a favor do PCP e, claro, do BE. Em suma, o que a lei estabelece é isto: estás farto do casamento? Pois, para além de outras razões, basta-te estar separado dois anos e obténs o divórcio sem necessidade de invocar um fundamento litigioso e mesmo que a outra parte não queira e não tenha tido culpa alguma. Assim, o casamento deixa de ser um contrato bilateral para passar a ser unilateral; uma das partes pode rasgar o contrato quando lhe convém e mesmo sem fundamento. Parece simples e lógico, para além de moderno: já não te amo, adeus. Porém, na prática, o que isto vai significar, em inúmeros casos, é que o mais forte vai ditar livremente a sua lei.

Hoje, estive no velório de uma amiga a quem foi diagnosticado um cancro há um ano e que viveu em agonia desde então. Morreu esta manhã, depois de comer o último pequeno-almoço, dado à colher, pelo marido. Simplesmente, encostou-se na almofada e morreu. Segundo a lei do PS, um dos motivos que podem justificar o pedido de divórcio unilateral é a “doença mental do cônjuge” ao fim de um ano. Ora, uma doença mental, como todos sabemos, é uma doença igual às outras. Se, em lugar de ter tido um cancro, esta minha amiga tivesse tido uma doença mental, o marido podia ter-se livrado dela e de todas as chatices, descartando-se do último pequeno-almoço e de tudo o resto.

Repito que não sou católico e nunca me casei pela Igreja, mas acho lindíssimo aquele juramento que se faz nos casamentos católicos, de ser-se fiel e dedicado ao outro na abundância como na pobreza, na juventude como na velhice, na saúde como na doença. Amar é isso mesmo e, até ver, o casamento é o único contrato que tem como objecto o amor. Ao abrigo da filosofia da lei do PS, o marido podia “ter dado o fora”, ao ver a mulher doente. Ao abrigo da decência humana, não.

Miguel Sousa Tavares, in revista GQ PORTUGAL | N.º 65 | Setembro 2008

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