quinta-feira, 4 de setembro de 2008

"Cá por mim, isto há-de ir"

Começa um novo ano escolar. Os professores reúnem esforços e vontades, preparam materiais, pensam em estratégias motivadoras. Os alunos despedem-se das férias com a nostalgia dum tempo agradável e sem exigências. As famílias agradecem a existência de profissionais que os libertam duma tutela incessante. E que, além disso, ensinam os filhos a pensar e a conviver. Tarefas que, por experiência, os pais e mães acabaram por considerar quase impossíveis. E isto, quando apenas têm um ou dois filhos. Que se passará – interrogam-se muitos deles admirados – com grupos numerosos como são as turmas, integrando distintos alunos cada um deles filho do seu pai e da sua mãe? Não foi tarefa fácil tomar conta dos filhos ininterruptamente durante o verão. Excepto nos dias de acampamento, da estadia em casa dos avós ou do fim de semana passado com os amigos.
Quero apresentar a todos quantos integram a comunidade educativa, um interessante slogan para o novo ano: “Cá por mim isto há-de ir”. Que o esforço seja constante, que a convivência seja pacífica, que o trabalho seja estimulante, de forma a que cada um possa contribuir para um progresso significativo na aprendizagem.
A parte mais complexa, a meu ver, é a que cabe aos profissionais do ensino. É nas suas mãos que a sociedade deposita toda a suas esperança. Bem sei que quem não deseja aprender, dificilmente o poderá fazer. Bem sei que alguns alunos chegam às escolas dispostos a rebentar com elas. Mas é aí, precisamente, que reside, hoje em dia, a especial missão do educador. Criar condições em que seja mais fácil realizar a aprendizagem. Tornando razoáveis os objectivos, atractivos os métodos, amáveis as relações, flexível a organização, agradável o ambiente. O educador não pode (nem deve) agarrar o aluno pelo pescoço, a fim de que ele ganhe vontade de aprender, mas pode intervir no contexto e nas relações. Daí o lema: “Cá por mim isto há-de ir”.
Não é fácil, bem o sei. O professor trabalha com “materiais” muito pouco dóceis, com comportamentos e reacções imprevisíveis. O arquitecto trabalha com materiais que obedecem a leis, que respondem da mesma forma aos mesmos estímulos. As pessoas, não. As pessoas são únicas, irrepetíveis, insubstituíveis, imprevisíveis, dinâmicas...
Além disso, o educador tem de trabalhar com grupos numerosos. A adaptação à singularidade de cada indivíduo exige habilidades e recursos de que – por vezes – não se dispõe. Já imaginaram um médico a quem, face a um grupo de trinta pacientes, pedissem que fizesse o diagnóstico a todos eles ao mesmo tempo, com as mesmas perguntas e recorrendo à mesma forma de exploração, que a todos desse o mesmo tratamento, que todos tivessem de o aplicar ao mesmo tempo e que tivesse de fazer um controlo igual, e ao fim do mesmo tempo, a todos eles?
Acrescente-se a todas estas dificuldades intrínsecas outras de carácter mais conjuntural como, por exemplo, o momento social actual, em que os valores promovidos pela escola são persistentemente negados pela cultura. Onde a escola fala em solidariedade, a cultura fala em competitividade, onde a cultura fala em individualismo a escola fala em cooperação, onde a escola fala em ética a cultura fala em relativismo moral...
A tarefa do educador é difícil. Alguns acham-na fácil, bem remunerada, e gozando de férias intermináveis. Quem a observa de perto, com objectividade e boa vontade, reconhece que é uma actividade bem complexa. A minha amiga Lourdes Montero, num recente livro intitulado “A Construção do Conhecimento Docente”, reproduz uma citação do irónico escritor galego Manuel Rivas. Recordo-a, aqui, ao leitor: “Há muita gente, porém, que acha que os professores, hoje em dia, vivem como marqueses e que têm a mania de se queixar, talvez devido à ideia de que trabalhar para o Estado é um perfeita pechincha. Mas se me derem a escolher entre uma expedição “Aos Confins do Impossível” e um jardim de infância, não hesitarei. Escalarei o Evereste pelo lado mais difícil. Ensinar não requer, apenas, uma qualificação académica. Um bom professor, ou um bom mestre, tem de ter o carisma dum Chefe de Governo, o que com certeza está ao seu alcance; a autoridade dum porteiro, o que já se torna mais difícil, e as competências combinadas dum psicólogo, dum palhaço e dum comandante da Kfor. Sei duma professora de Ciências Naturais que só dominou os alunos quando provou possuir conhecimentos futebolísticos pouco comuns, o que lhe permitiu abordar com entusiasmo a evolução das espécies”.
A tarefa docente é uma tarefa peculiar. Numa sociedade que sabe que acumular informação é dispor de poder, trabalham uns indivíduos que se dedicam, por ofício, a partilhar a informação que possuem, a transmiti-la, a despertar o desejo de a adquirir, a facilitar estratégias para a analisar e a oferecer critérios para as pessoas se servirem dela eticamente.
É preciso não abandonar os educadores. Há que estar ao seu lado. Por isso quero estender o lema a todos os cidadãos e cidadãs. Porque a educação é de todos. Todos têm possibilidade e, diria mesmo, obrigação de ajudar os que na sociedade se dedicam a esta complexa tarefa de educar. É por isso que também para algum dos meus leitores há-de servir este apelo: “Cá por mim, isto há-de ir”.
Miguel Ángel Santos Guerra, No Coração da Escola, ASA Editores, Porto, 2003, pp.159 a 161

Um comentário:

Marco Gomes disse...

Uma interessante explanação dos problemas reais de "educar" e as particularidades do "educador".

Contudo, o autor defende, penso eu, o ensino da ética na escola em contrapartida ao relativismo moral da sociedade. Bem, penso que o processo inverso seria mais pedagógico (é apenas uma opinião).

P.S. gostei do lema: "Cá por mim, isto há-de ir".