Chamo-me Afonso da Silveira, sou professor do ensino secundário, participei nas manifestações de professores em Lisboa contra o modelo de avaliação docente, fiz greve nos dias 3 de Dezembro de 2008 e 19 de Janeiro de 2009, subscrevi todas as moções repudiando aquilo que sempre considerei uma farsa em matéria de avaliação dos profissionais de ensino e hoje estou confrontado com um despacho do Presidente do Conselho Executivo da minha escola que diz que até dia 7 do próximo mês de Fevereiro tenho de entregar os objectivos individuais e decidir-me se quero ou não ser avaliado na componente científica e pedagógica.
Que fazer? É a pergunta que não pára de me martelar na cabeça. Será que devo requerer ser avaliado na componente científica e pedagógica? Que ganho eu com isso? A possibilidade de poder ter uma classificação profissional de “Muito Bom” ou “Excelente”, diz o Ministério da Educação. Bem, isso dava-me jeito, ajudava-me a progredir mais rapidamente na carreira e o dinheiro faz sempre falta. Lá estou eu a divagar. Ter a possibilidade de obter essas classificações altas não é a mesma coisa que consegui-las. O sistema de quotas é que “lixa” isto tudo. Só um número muito reduzido de professores é que será contemplado com estas avaliações e na maioria dos casos isso terá pouco a ver com as suas competências.
Aliás, foi esta uma das razões porque lutei contra este sistema de avaliação. Será que terei alguma possibilidade de obter um “Muito Bom” ou um “Excelente”? Não me parece. Faltei um dia por conta das férias porque tive de acompanhar a minha mãe ao médico e não me atribuíram qualquer cargo, nem mesmo uma direcção de turma. Para além disto, tal como as coisas estão, o mais natural é tudo ser corrido a “Bom”. Bem vistas as coisas, nada ganharei em requerer ser avaliado na componente científica e pedagógica. Mas se, apesar de tudo, o fizer, que perderei? Nem quero pensar nisso. Até me dá calafrios. Para começar perderei a minha dignidade. Então, andei eu a manifestar-me contra este modelo de avaliação e agora, justamente na componente em que o Ministério recua, é que eu apareço a dizer que quero que se aplique à minha pessoa? Como me poderei ver diariamente ao espelho sem sentir uma profunda vergonha por aquilo em que me transformei? Não, não há nada que compre este andar de cabeça erguida.
Está decidido. Não apresentarei qualquer requerimento no sentido de pedir para ser avaliado na componente científica e pedagógica. Ainda agora tomei a decisão e até parece que respiro melhor. Isto da gente fazer o que tem a fazer até parece que nos dá anos de vida. E quanto aos objectivos individuais, que fazer? Entregá-los? Se os entregar que ganharei? Dizem-me, a possibilidade de ter “Bom” na minha classificação profissional. E para que é que isso me servirá? No fundo, para nada. Com “Bom” nunca chegarei a titular, nem nunca serei, eventualmente, beneficiado em concursos futuros. Ter “Bom” é, assim, uma espécie de viver como habitualmente. E se não entregar os referidos objectivos, o que me poderá acontecer? O período a que se reporta esta avaliação não será considerado para efeitos na progressão na carreira docente, diz o Ministério. Nada de muito pesado. Quem já marcou passo tanto tempo no mesmo escalão, também pode fazê-lo por mais uns meses e há sempre a possibilidade de esta trapalhada ficar sem efeito no futuro, nomeadamente no caso do PS não alcançar uma maioria absoluta nas próximas eleições legislativas, o que é mais do que previsível. Mas também me sujeito à possibilidade de ter um “Regular” ou mesmo, num caso extremo, um “Insuficiente”.
Ora, isto não me agrada mesmo nada. Mas atenção! Está garantido que as classificações inferiores a “Bom”, obtidas este ano, poderão ser corrigidas por uma avaliação extraordinária a realizar no próximo ano. Afinal, o problema do “Regular” e do “Insuficiente” pode ser sempre ultrapassado. E processo disciplinar? Será que poderei ser alvo duma coisa dessas? Processos poderão sempre aparecer, agora sanções disciplinares é que não. Que estarei eu a fazer de mal se não entregar os ditos objectivos? Estarei a impedir o “patrão” de me avaliar? Não, ele pode sempre fazê-lo e, inclusivamente, até pode definir os objectivos que eu não entreguei e, em função disso, avaliar-me. Afinal, para que eu possa ser avaliado não tenho que entregar quaisquer objectivos, com isso colaborando num processo em que de todo discordo.
Está decidido, também não entrego os objectivos individuais. Sete horas, toca o despertador, Acordo meio estremunhado, entro aos tropeções dentro da banheira e acordo em definitivo por força dum jacto de água fria. Faço a ligação mental ao dia anterior, a memória sinaliza a decisão tomada em matéria da minha avaliação profissional e um imenso sorriso aflora-me aos lábios. Visto-me à pressa, saio de casa, e em passadas rápidas chego à praça pública. Abro os braços e um enorme grito sai do fundo das minhas entranhas, LIBERDADE! Dois transeuntes olham e ficam a olhar embasbacados. Eles não sabem, mas eu sei e tu também sabes: Só um homem que recusa ser escravo pode ser um “Excelente” professor.
Constantino Piçarra
in Diário do Alentejo [30/01/2009]
Nota: Texto copiado do blogue Anabela Magalhães
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