sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

OPINIÃO > Maria do Carmo Vieira: «A necessidade de resistir»

Nunca como agora, e desde o restabelecimento da democracia, com o 25 de Abril, foi tão aviltada a classe dos professores. Não somos só nós a senti-lo, ao experimentar a imposição de ordens absurdas, perfeitas agressões à nossa inteligência e sensibilidade e ao nosso estudo, mas também muitos dos nossos alunos, de diferentes idades e níveis de ensino. Por alguma razão nos dizem, alguns já pais e encarregados de educação, que não gostariam de ser professores, gabando-nos a paciência e a resistência e lamentando a pouca dignidade dada ao acto de ensinar e ao acto participado de aprender.

Bombos da festa nos media, os professores têm também vindo a ser espezinhados e desautorizados em artigos de insignes colunistas, escrevendo sobre o que não conhecem e sem a mínima preocupação em inteirar-se da verdade; em artigos de alguns psicólogos, que a Fortuna ajudou a subir ao pedestal, e recordamos os «10 mandamentos de um professor» que um deles criou; em entrevistas de sociólogos, colocados em Observatórios, que minimizam os efeitos da violência e da falta de educação na sala de aula, numa compreensiva permissividade por quem agride por gesto ou verbalmente; em opiniões de defensores, acérrimos e acríticos, de teorias das ciências de educação, os quais teimam, de forma arrogante e numa indiferença lamentável pela infantilidade que estão a desenvolver nos alunos, em descrever a sala de aula como se de uma creche ou recreio se tratasse. Não se admiraram, pois, os professores quando ouviram a senhora ministra da educação ufanar-se de ter ganho a opinião pública. No entanto, bem gostariam de a ver, acompanhada ou não pela sua equipa, aplicar as novas ideias pedagógicas, entretendo, durante 4 ou 5 horas seguidas, diferentes turmas, muitas das quais problemáticas, e com cerca de 30 alunos cada uma, «com um poemazito» ou qualquer outra matéria que achasse digna do discurso que os alunos trazem de casa. Certamente, logo no primeiro dia, alguns minutos depois da primeira hora, a senhora ministra sairia a correr da sala de aula, indignada, e em direcção ao Conselho Executivo, um pouco à semelhança do que lhe aconteceu na Assembleia da República, num debate sobre Educação, em que após o seu início, e perante o alvoroço dos deputados, se voltou para o colega Augusto Santos Silva, choramingando, num pedido de socorro: «Mas eles não me deixam falar…».

Numa «ousada estratégia de mudança» do ensino, alteraram-se, primeiro, e desleixadamente, os programas, esvaziando-os de conteúdos, e relevando como máxima conducente ao sucesso da aprendizagem o «respeito pelo discurso que os alunos trazem de casa» e, a este propósito, reflicta-se sobre o ambiente de uma escola privada ou de uma escola pública e perceber-se-á o elitismo desta recomendação, tão aparentemente democrática. As críticas que contrariavam a mediocridade, exposta sem vergonha, na elaboração dos novos programas, foram qualificadas como próprias de quem «habituado à rotina resistia à mudança», quais «Velhos do Restelo». Esta acusação, hoje em dia, muito vulgarizada em todos os campos e que pretende atingir os que ousam pensar e usar o seu espírito crítico, só põe a nu a ignorância de quem a utiliza e desconhece, pois, o significado profundo e a relevância da figura do «velho de aspecto venerando» no poema épico camoniano, o qual ousou destemidamente criticar a ambição, a vaidade, o desejo de fama e de poder do Rei D. Manuel, bem como a sua indiferença perante o despovoamento do reino e o abandono das famílias.

Uma vez imposta a aplicação de programas mal-elaborados (e refiro-me em especial aos de Português), surgiu a inovação do manual do professor, com as aulas mastigadas e prontas a servir para os «incapazes» (perceba-se os professores), tornando-se assim desnecessária a preparação de aulas, que até aí fora uma incumbência insubstituível do professor. A relação ensinar-aprender foi consequentemente substituída pela nova estratégia de pronto a servir ― pronto a comer, sem lugar a reclamação, e por isso amplamente marcada pela passividade mútua e pela preguiça de pensar. Veio depois a imposição da TLEBS, falsamente justificada com a necessidade de uniformizar a terminologia gramatical, que fora destroçada também por uma anterior aventura linguística, conhecida pela «gramática das árvores» (gramática generativa). Tal como a primeira experiência, sem futuro, conforme se verificou, e com consequências trágicas para o ensino da gramática, também a TLEBS, contestada por linguistas de referência na investigação da disciplina, criou um segundo caos, que bem pode ficar exemplificado na classificação deste advérbio de modo: evidentemente ― «advérbio disjunto reforçador da verdade da asserção». Em vez da Gramática que esclarece e permite uma reflexão sobre a lógica da língua, eis a TLEBS, imagem de uma linguística estéril, descritiva e extraordinariamente confusa, agora revista e, de novo, imposta na Escola a contento dos aventureiros que a criaram.

Porque todas estas mudanças não deram o resultado desejado, ou seja, o êxito total a nível de exames, de passagens de ano e de abandono escolar, impôs-se o recolher obrigatório na Escola, transformada em campo de reeducação de professores a uma só voz, mas também lugar de «fuga do mundo» e de lazer para os alunos. Paradoxalmente, priva-se os alunos de tempo para si próprios, atribuindo-lhes um excesso de carga horária, impróprio para qualquer adolescente, que os impede de estudar convenientemente por falta de tempo, mas esta situação já as ciências de educação e o próprio ME não consideram anti-pedagógica.

O milagre, fruto de contínuas alterações e formatações no sistema de ensino e de ameaças veladas em ordens e contra-ordens, começou entretanto a acontecer e os resultados já estão à vista. Ver para crer como S. Tomé. Quem duvidará da média de 14 valores nos exames de Matemática do 12.º ano, ou dos quase 90 por cento de positivas na primeira fase das provas, no conjunto dos exames nacionais do secundário, ultrapassando os 66 por cento em 2007, ou dos 97 por cento das escolas com média positiva nas provas do 9.º ano, segundo dados da LUSA?

O ultimatum, provindo do GAVE (Gabinete de Avaliação Educacional), e sintetizado na ideia de que «os alunos têm direito ao êxito» ― resultou em pleno, mostrando que a obediência, sobretudo de muitos Conselhos Executivos em relação ao ME, deu os seus frutos, nomeadamente pela escolha de professores menos exigentes para a correcção de exames e pelos critérios de correcção utilizados. Aliás, a concretizar-se o desejo dos iluminados, que constituem e dirigem o Conselho Nacional de Educação, tornar-se-á obrigatória a passagem de todos os alunos até aos 12 anos, certamente com o argumento (o do evitar o traumatismo para as crianças) que motivou a decisão de um único professor para o 2.º ciclo. Concretizando-se esta medida nos dois primeiros ciclos, ela estender-se-á brevemente ao 3.º e, então, o êxito será total, restando aos professores carimbar até à exaustão as aprovações de ignorância. Assim, despachando as criancinhas para fora da Escola, poupa dinheiro o ME, ao mesmo tempo que levanta a bandeira da vitória pelo cumprimento das metas que propusera e cujas consequências são a degradação e o declínio da Escola Pública.

Quando lemos que «o fim da educação é a integração, a preparação da criança para a vida, para o seu lugar na sociedade, no aspecto vocacional, espiritual ou mental»[1] e conhecemos as orientações que, em matéria de educação, determinam um mundo às avessas, resta-nos lembrar os ensinamentos da História e também da Literatura, ousando cada um de nós ser aquele «alguém que diz não!».

Maria do Carmo Vieira


[1] Herbert Read, Educação pela arte, Ed. 70.

Nenhum comentário: