Os números da ministra, os da OCDE e o dia-a-dia da escola
A engenharia estatística feita para apresentar, de forma artificial, o sucesso do nosso sistema de ensino obrigou a baixar os níveis de exigência e é um erro que pagaremos muito caro no futuro
Para assinalar a abertura do ano lectivo, o PÚBLICO pediu a 85 professores que dissessem o que iriam fazer para melhorar a escola. Não escolhemos uma amostra científica nem procurámos que fosse representativa, apenas tivemos o cuidado de que fosse aleatória e de não condicionar as respostas. Ora lendo o trabalho que hoje editamos verifica-se que uma grande parte dos professores, talvez a maioria, afirma ou dá a entender que ensinaria melhor se o ministério atrapalhasse menos. E são numerosíssimas as respostas em que se percebe até que ponto chegou a desmotivação de muitos docentes.
No entanto, milagrosamente, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues e o primeiro-ministro José Sócrates vieram dizer-nos que tudo corre às mil maravilhas na área da educação. Há mais investimento (?) e conseguiram-se melhores resultados a todos os níveis, sobretudo no sucesso educativo dos alunos. Distribuíram aos jornalistas alguns quadros em abono da sua tese, provando que a percentagem de chumbos diminuiu (mas já não entregaram os números absolutos, para se perceber melhor o universo a que se referiam as percentagens...), e ainda disseram, humildemente, que o êxito se devia aos professores.
O que significa que estamos perante um paradoxo: professores que viveram um ano conturbado e de contestação conseguiram o milagre de estarem fortemente motivados para alcançar os objectivos com mais sucesso. Não bate certo. Até porque o inquérito também não encontrou, antes pelo contrário, esses professores altamente motivados.
Existindo um paradoxo, tem de existir uma explicação. A primeira seria estarmos perante uma geração de alunos mais motivada e mais interessada na aprendizagem e no sucesso. Seria óptimo se fosse verdadeira, mas é falsa: a maioria dos alunos são os mesmos do ano passado, só que um ano mais velhos. Por esse lado não houve milagres.
A segunda explicação é a que foi ontem dada pela generalidade dos professores que se pronunciaram: há instruções para chumbar menos alunos, houve exames mais fáceis e aumentou-se tanto a burocracia que é quase preciso ser um herói para, como se diz em eduquês, "reter" uma criança ou um adolescente. É muito mais fácil deixá-lo prosseguir, mesmo que mal preparado. Infelizmente é esta a resposta verdadeira, a resposta que foi sendo antecipada ao longo do ano lectivo, quando aqui se escreveu que o Ministério da Educação estava mais preocupado com boas estatísticas do que com um bom sistema de ensino e alunos realmente qualificados.
Vale a pena citar, a este propósito, José Pacheco, director do Centro de Investigação em Educação (CIED) da Universidade do Minho, que ontem explicou à agência Lusa que "as elevadas taxas de retenção que se registavam há uns anos eram incomportáveis para qualquer Governo, por causa da comparação dos resultados a nível internacional. Agora reter um aluno é um processo difícil, o que faz com que, estatisticamente, haja uma diminuição significativa dos chumbos".
Ou então Jorge Ramos, especialista em História da Educação, que concretizou: "Os níveis de exigência estabelecem-se de acordo com os objectivos esperados por parte do Estado e o objectivo actual é que toda a gente termine o seu percurso escolar. As competências e os objectivos esperados para cada ano de escolaridade passam a ser definidos em função de toda a população de uma determinada faixa etária."
Acontece porém que, mesmo utilizando as estatísticas portuguesas, em particular as do Ministério da Educação, a OCDE sempre vai produzindo estudos comparativos que, mesmo condicionados pelos dados enviados de Portugal e não podendo avaliar fenómenos como o criticado "facilitismo", permitem comparações interessantes.
Por exemplo: ficámos a saber que Portugal é um dos países da União Europeia onde se dedica menos tempo ao ensino da língua pátria e da Matemática, precisamente as duas cadeiras centrais, básicas, de qualquer currículo escolar; ou que os docentes portugueses de todos os níveis de ensino são os que dão mais horas de aulas e os que mais tempo têm de permanecer nas escolas, razão por que é provável que sejam dos que têm menos tempo para preparar as aulas e dos que mais horas gastam a preencher papéis e a desempenhar funções burocráticas.
Fazendo o cruzamento das estatísticas "embrulhadas" para eleitor ver com as da OCDE e acrescentando a leitura que os especialistas fazem do "milagre" do sucesso, só se pode chegar a uma conclusão: depois da fase da massificação do ensino que, naturalmente, se traduziu numa perda de qualidade por passarem a aceder ao sistema alunos com uma base familiar mais frágil, aquilo que devia ser a fase da qualificação e da exigência está ser substituído por uma mistificação que procura transformar o insucesso em sucesso, fingindo que, assim, se ganhou qualidade.
Num país onde os níveis formais de qualificação da população continuam ao nível dos da Turquia (só 28 por cento da população entre os 25 e os 64 anos completou o ensino secundário), este teatro político não é uma comédia, é uma tragédia que pagaremos muito caro no futuro.
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