domingo, 7 de novembro de 2010

Thierry Garrel: «Confesso a minha tristeza quando aqui chego e olho para a televisão»

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Não é exatamente a mentalidade da televisão pública atual. Porque espera resultados audiométricos instantâneos, coisa de que os canais comerciais têm necessidade para atingir as suas metas, mas de que a pública não devia ter necessidade a partir do momento em que a qualidade dos seus programas subscreve uma missão pública que subsiste. Hoje há como que uma dúvida propagada entre os políticos -que já não sabem mais como pensar a televisão a não ser para a simples função da ‘formação’ e do microfone para fazer campanha — sobre a finalidade dos canais públicos, que passaram, por isso, a ter os mesmos objetivos ou o mesmo horizonte que os canais privados. Nessa competição, a maioria dos canais públicos abandonou a sua razão de ser.

Um dos êxitos da ARTE tem sido o contributo para o incremento do documentário. Teve relevância no cofinanciamento e edição de programas e filmes que constituem uma riqueza cultural. O documentário tornou-se o objeto cultural transacionável central. É o objeto de criação central do nosso tempo. Não há uma só atividade sociocultural que não o utilize. Ele é, hoje, o que era o romance no século XIX, que todas as classes da sociedade partilhavam.

E permite tecer a memória dos povos através do reflexo da anterioridade, em contraponto com a televisão banalizadora, que contribui para o apagamento da memória. Se a televisão pública se contenta com contribuir para o apagamento da memória, isto é, apenas preencher grelhas para que haja sempre uma imagem a transmitir, mas que não vai durar, vai é produzir o esquecimento, então para que serve? É preciso impulsionar a reflexão sobre a razão de existir da televisão pública.

Do seu ponto de vista, qual é? Deve ser educativa no sentido muito largo do conceito, e cultural, eventualmente fomentando o confronto social... isso seria ótimo. E poderá ser artística. Podem existir diversas capacidades, múltiplas razões de concebê-la. Apesar disso, há quem conteste a legitimidade para manter uma televisão pública. Bom, vejamos: quanto à informação, tudo seria relativamente claro, pois deverá ser independente, posto que, sendo pública, não deve servir interesses particulares. E a restante programação? A partir do momento em que a televisão desocupa o campo da cultura lato senso — não dos conteúdos culturais mas da troca de ideias e de valores, da troca de pontos de vista... — não tem mais razão de existir.

Acha que é o que se passa em Portugal? Confesso a minha tristeza quando aqui chego e olho para a televisão. Vim há vinte anos, há dez, há cinco; e verifico que uma televisão como a RTP baixou o seu nível e quase baniu o documentário enquanto programa central para fornecer novos pontos de vista e para propor emoção e reflexão. A primeira vez que cá estive a SIC acabava de arrancar. Vimos como conquistou a sua parte do mercado através de uma estratégia comercial poderosa. Esperaríamos que a televisão pública tivesse sabido o que queria de si e resistido, continuando a existir através de uma oferta alternativa, inventando programas que fossem de uma outra natureza e conceito e capazes de fidelizar públicos. Não foi isso que aconteceu. Contornaria, dessa forma, o frenesi em torno das audiências? Georges Duby, um historiador, inventou um conceito, mesmo no início da Sept: chamava-lhe o canal das audiências atentas. Colocou audiências no plural — as audiências de um só canal, ele não as contava, mas alertava para que eram diversificadas —, e atentas no sentido de serem compostas por espectadores que seriam respeitados no seu desejo de estarem atentos aos sinais do mundo. A partir do momento em que se substitui as audiências pelos resultados do audimat, que mede instantaneamente, por grosso, a presença passiva, chegámos a uma programação do tipo pavloviano.

O que fazer para mudar a situação da televisão pública? Hoje, na Europa, ela encontra-se numa encruzilhada, em níveis diferentes mas todas em crise. Em Portugal, pode dizer-se que a situação é catastrófica. A questão da televisão pública repousa na política sobre como viver em comunidade. Tal como se coloca a problemática do sistema de saúde ou da educação, deveríamos recolocar a questão do sistema de transmissão do serviço público.

A afirmação internacional do documentário confirma o que diz. Há o desejo declarado das pessoas em visioná-los. Não se compreende que os canais, públicos ou privados, não vejam o filão que aí têm. Há público à espera disso. Não se trata de moda, não é senão o princípio. Proporcionam uma nova inteligência do mundo numa época em que a globalização instantânea e a fragmentação dos factos na fogueira da informação produzem uma dificuldade de compreender as questões contemporâneas.

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Extracto da entrevista de António Loja Neves a Thierry Garrel, um dos pensadores mais conceituados na área do audiovisual e do documentário, publicada pela revista ATUAL [Expresso n.º 1984 – 06/11/2010]

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