quarta-feira, 8 de abril de 2009

«A bolsa ou a vida»

A argumentação é sempre possível face aos que escolhem a violência? Em Os Miseráveis, Victor Hugo conta-nos uma situação surpreendente (trata-se é certo de ficção, mas parece verosímil) em que Jean Valjean se encarrega de convencer um jovem ladrão a renunciar à sua vocação. Este último, cujo apelido é Montparnasse, atacou-o brutalmente, por trás, para o roubar, mas Jean Valjean, ainda que idoso, consegue dominá-lo. Sustendo a violência do seu jovem agressor, e impedindo-o de partir, serve-se então de uma verdadeira argumentação:

« ― Que idade tens?

― Dezanove anos.

― És forte e valente. Por que é que não trabalhas?

― Isso chateia-me.

― Qual é o teu estado civil?

― …

― Fala a sério. Podemos fazer alguma coisa por ti. O que é que queres ser?

― Ladrão.»

Fez-se um silêncio. O velho parecia profundamente pensativo. Estava imóvel e não abandonava Montparnasse. Em cada instante, o jovem bandido, vigoroso e ágil, tinha sobressaltos de animal caído numa armadilha…O devaneio do velho durou algum tempo, depois, olhando fixamente Montparnasse, aumentou suavemente o tom de voz e dirigiu-lhe, naquela sombra onde estavam, uma espécie de discurso solene. (…)

«Não queres ser operário, serás escravo. O trabalho deixa-nos um lado para lhe tomarmos o outro; não queres ser amigo dele, serás o seu negro. Ah! Não quiseste o cansaço honesto dos homens, vais ter o suor dos condenados. Os outros cantam, tu sofrerás. Verás de longe, de baixo, os homens que trabalham e pensarás que estão a descansar. O lavrador, o ceifeiro, o marinheiro, o ferreiro surgirão na luz como os bem-aventurados de um paraíso… Ah! Não fazer nada era essa a tua finalidade. Pois bem! Nem uma semana, nem um dia, nem uma hora sem abatimento… Ah! Meu pobre jovem, estás no mau caminho, a vadiagem é má conselheira; O mais rude dos trabalhos é o roubo. Acredita em mim, não aceites a pesada carga de ser preguiçoso… Ser um malfeitor é incómodo. É menos penoso ser um homem honesto. Agora, podes ir e pensa no que eu te disse. A propósito, que querias de mim? A minha bolsa. Toma-a…»

Depois de tudo isto, o bom homem virou as costas e retomou tranquilamente o seu passeio.

«Palerma!», murmurou Montparnasse…

Montparnasse, estupefacto, viu-o desaparecer no crepúsculo.

Montparnasse reflectiu pela primeira vez na sua vida[1].

A situação, literária, é evidentemente ideal, mas não destituída de um certo realismo. Jean Valjean obriga o outro ao mesmo tempo a objectivar a sua emoção (exercendo uma força mas apenas a necessária) e a escutar, apesar de tudo, o que ele lhe diz. Então, pode tentar convencê-lo a deixar de ser ladrão. Como construiu a sua argumentação? Não lhe explicando que «roubar é desonesto», o que não teria convencido ninguém para além do próprio Jean Valjean, mas procurando em primeiro lugar, pelo questionamento e escuta, a razão de Montparnasse querer ser ladrão. Vai, em seguida, pôr em contradição as razões que Montparnasse avança «não trabalhar» com a obrigação que terá de o fazer, pior, uma vez que será preso por muito tempo. Esse argumento, pelo menos, pode encontrar um eco no jovem ladrão. Nunca convencemos pelas razões com as quais nos convencemos a nós próprios.

[1] Victor HUGO, Os Miseráveis, livro quarto, II

Nota: Com a devida vénia a José Matias Alves, autor do blogue Terrear.

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