Como é viver num país sem sigilo bancário? Posso explicar.
Estudei por uns anos num país onde era frequente os meus colegas bolseiros regressarem às suas terras de origem para fazer os seus “trabalhos de campo”. Durante os seis ou sete meses que passavam fora, as bolsas continuavam a ser depositadas nas suas contas bancárias. Quando regressavam, os meus colegas podiam encontrar já à sua espera uma carta das finanças que os alertava para a necessidade de pagar imposto por aquele montante, agora já considerável, que tinham acumulado. Só que ― em geral ― as bolsas de estudo não são tributáveis. Bastava então que o interessado se dirigisse às finanças para mostrar os recibos correspondentes. Uma vez justificado o montante, não havia impostos a pagar e o assunto estava encerrado. Era chato? Sim, mas não mais do que as obrigações fiscais correntes. Atentatório da privacidade? Nem por isso.
Para a maior parte dos cidadãos, o sistema nem chega a notar-se. O dinheiro que entra na conta é o dos salários que são declarados e o sistema informático não detecta divergências de vulto entre um montante e outro. A diferença entre viver num país com e sem sigilo bancário é nesses casos irrelevante.
Mas imaginemos agora que, em vez de um bolseiro, o dono daquele dinheiro a mais era um empreiteiro que não declarava os pagamentos que recebia, ou o dono de uma oficina que nos pergunta se o arranjo do carro é “com factura ou sem factura”. A impossibilidade de justificar a diferença de vulto entre o que está na conta e o que se declarou significa que o imposto é mesmo para pagar. Será para eles pior viver num país sem sigilo bancário? Tenho dúvidas. Tenho reparado que mesmo as pessoas que não passam facturas também se queixam de que as escolas públicas não têm condições, as ruas estão mal iluminadas e ― talvez com a excepção dos donos das oficinas ― que as estradas estão esburacadas.
Dou esta explicação “do ponto de vista do cidadão” e sem conhecimentos de fiscalista sobre o funcionamento interno do sistema. Mas qualquer pessoa pode ver que há duas condições para que a coisa funcione decentemente. A primeira é que se trata de um sistema preventivo; a segunda é tratar-se de um sistema universal. Essa universalidade permite uma sensação de impessoalidade que, no caso concreto, é reconfortante: saber que não estou a ser perseguido pessoalmente mas que o programa informático daria sinal de alerta com qualquer pessoa que tivesse a mesma discrepância de vulto no saldo da conta, sem curar dos movimentos que faço com o meu dinheiro.
A proposta do Governo parece-me defeituosa precisamente por isto. Não sendo preventiva ― o sigilo só se quebraria por causa de suspeitas a posteriori ―, também acaba não sendo universal neste sentido. As declarações do ministro das Finanças sobre reunir “pela imprensa” suspeitas contra o contribuinte x ou y também não me descansam nada. Então vai continuar a ser possível fugir aos impostos desde que se seja discreto? E que garantia temos de que o sigilo não será quebrado arbitrariamente? O funcionamento de um sistema preventivo e universal em todos os países que nos são próximos na UE é mesmo o tipo de coisa que nos levava a perguntar se seria Portugal um país tão rico ou com um Estado tão superavitário que se pudesse dar ao luxo de não arrecadar os contributos de toda a gente. Depois de tantos anos de atraso, parece que o país está maduro para o fim do sigilo bancário. Agora importa estar atento para uma única exigência, a que o Governo não conseguirá escapar: já que vem tarde, que venha bem feito.
Fonte: PÚBLICO [20.04.2009]
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