Não me parece desejável que ninguém guarde estes guardas ― em que me incluo. Não é saudável o corporativismo.
Sou jornalista há mais de vinte anos e nunca tive outra profissão. Acredito na importância do jornalismo para a democracia. Acredito que é fundamental ter jornalistas livres e sem medo ― mesmo e sobretudo quando têm motivos para ter medo. Acredito que um jornalista responde antes e depois de tudo perante a sua consciência, como prevê o Código Deontológico e o actual Estatuto dos Jornalistas. Acredito até que em certas ocasiões faz sentido um jornalista violar leis ― sobretudo se forem as leis de um Estado não democrático ou se se violar a lei para, por exemplo, demonstrar como é fácil violá-la (como quando se compram substâncias ilegais para mostrar a facilidade com que podem ser compradas), mas não acredito em isenções especiais de cumprimento da lei para jornalistas ou garantias administrativas, como aquelas que antes do 25 de Abril protegiam os polícias de acusações de cidadãos “vulgares” e conferiam à sua palavra valor de verdade irrefutável.
Acredito na importância daquilo a que dou o nome de jornalismo de investigação ― aquele que procura para além das aparências, das declarações do dia-a-dia, da superficialidade que faz o noticiário corrente, que tenta chegar ao fundo dos assuntos e dos casos através do estudo, do cruzamento de fontes e depoimentos, da reconstituição de factos: um jornalismo que recusa instrumentalizações e agendas externas, independente e com a paixão da verdade. Acredito no poder do jornalismo ― o poder de denunciar, de expor, de contar a história não oficial, de interrogar e sindicar todos os poderes. E, por acreditar no poder e na nobreza do jornalismo, acredito na necessidade da sua regulação. Não me parece desejável que ninguém guarde estes guardas ― em que me incluo. Não me parece saudável que se assuma que ninguém pode criticar os jornalistas e o jornalismo sem ser acusado de tentativa de censura, silenciamento ou perseguição. Não me parece ― não é decerto ― saudável o corporativismo virulento que acolhe certas críticas públicas de jornalistas ao jornalismo, um corporativismo que reproduz os corporativismos que os jornalistas passam a vida a criticar nas outras profissões e que, como todos os corporativismos, protege e consagra a mediocridade e a falta de rigor, execrando como traidores os que o repudiam.
O corporativismo que reclama a auto-regulação para nada regular, o corporativismo que clamou contra os novos poderes fiscalizadores da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (constituída por uma assembleia de jornalistas eleitos por jornalistas e presidida por um juiz) para nunca mais se lembrar da sua existência ― talvez porque a Comissão nada fez até agora que se pareça com uma actividade fiscalizadora efectiva. Decerto porque não há casos de óbvia violação dos deveres de jornalistas a ocorrer à vista de toda a gente ― decerto porque, ao contrário do resto da sociedade onde não cessam de encontrar motivos de escândalo e suspeitas de malfeitorias, entre os jornalistas só há gente séria e sem interesses de qualquer espécie. É isso, os jornalistas são, e todos, infalíveis. E aquilo que publicam, tudo, é só verdade. Tal qual.
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