sábado, 4 de setembro de 2010

«Regresso à escola»

O semanário Expresso fez o desafio a personalidades dos mais diversos quadrantes: regressar ao liceu onde estudaram, para recordar os seus tempos de estudante.

O resultado desse desafio foi publicado na edição do passado dia 4 de Setembro, num artigo de Luís Pedro Cabral.

Aqui ficam os extractos que julgo mais significativos sobre as opiniões das seis personalidades, para que possamos ter uma opinião sobre o ensino daquele tempo e o actual.

Rita Ferro, Colégio das Escravas do Sagrado Coração de Jesus

“O prestígio das minhas redações nas freiras enchia-me de glória”

O amor à língua portuguesa, hereditário, despontou algures nas Escravas. “Os mais marcantes momentos de glória não vêm do sucesso dos meus livros nos primeiros dez anos de carreira, mas do prestígio das minhas redações nas freiras.” A sua disciplina predileta sempre foi o Português. Hoje agradece a disciplina com que este lhe foi ministrado. “E, já agora, não me conformo com o Acordo Ortográfico.”

Sobre a generalidade do ensino em Portugal, “nunca o achei adequado ao aluno-português-padrão — muita tralha obsoleta e programas esdrúxu- los — com exceção do ensino da língua, excelente no meu tempo, hoje calamitoso. Considero os programas atuais autistas relativamente ao perfil do aluno do terceiro milénio, mais sensorial e imediatista, mais ‘áudio-visual’ do que leitor, menos estimulado em casa. Exauridos e falidos, os pais só querem que os filhos passem de ano”.

Rita Ferro defende “tolerância zero à indisciplina, com penalizações inflexíveis a incidir sobre as notas, as propinas, a própria frequência. Tolerância zero à interferência histérica e abusiva de pais na sobreproteção dos ‘meninos’. E maior crivo na contratação de professores. Um povo deseducado e culturalmente desfavorecido, sem segurança para interferir na política é uma crucifixão cartológica.” Porém, “há uma coisa que me sossega e me intriga: o aluno do secundário distingue-se do universitário por alguma razão que me escapa. Os problemas de indisciplina parecem evaporar-se logo no primeiro ano. Vejo o futuro sem alarmes. As grandes crises sucede sempre um renascimento e é nisso que confio. O Quinto Império pode esperar e ‘a ideia não tem pressa’, já dizia o irmão Ortega”.

*ESCRITORA

HENRIQUE MEDINA CARREIRA*, Pupilos do Exército

“Sou hiperdisciplinado. Criaram um grande chato”

“Nos Pupilos, para além de todas as outras, há a disciplina militar. Levantava-me todos os dias às seis da manhã e tinha de ficar em compostura. Não se podia pôr o pé em ramo verde, que os castigos eram severos.

Eu era muito bem comportado. Ainda hoje, embora não pareça. Sou hiperdisciplinado. Criaram um grande chato.”

No Instituto dos Pupilos do Exército, onde entrou em 1941, fez o bacharelato em Engenharia Mecânica de farda vestida, juntando-se à formatura, marchando. E, quando a ocasião era de cerimónia, desfilando com a célebre barretina de penacho branco de pelo de cabra, que é símbolo intocável. “Quando era estudante, todos nós percebíamos o que era a escola: os professores estavam lá para ensinar e nós para aprender. E portávamo-nos bem. Em termos gerais, é uma coisa que não fica mal. Acho que se complicou de tal maneira a educação nas últimas três décadas que ninguém se entende. Tenho uma proposta modernista que constitui um avanço civilizacional: Delegações das universidades nas maternidades, para passar diplomas aos recém-nascidos. Poupava-se imenso ao país.”

Sobre o sistema educativo de hoje, uma analogia: “O hábito nacional das reuniões é o espelho do que somos. Detesto reuniões. Falam todos, repetem-se. Um massacre extraordinário de palavreado, tal como a discussão do nosso sistema de ensino.” Mas há coisas fundamentais a fazer. “Avaliações fundamentadas dos professores logo à entrada, separando o trigo do joio. E avaliações rigorosas dos estudantes. Era um primeiro passo para diminuir a indisciplina que grassa. Nem o Marcelo Caetano, que foi meu professor de Direito, se aguentava com isto.” No vértice do ensino, “os programas escolares deviam ser elaborados por pessoas do pensamento, da arte, da economia, da história, das ciências”. E o aumento do grau de exigência e de pressão dos alunos. “Não há melhor avaliação do que quando um estudante está pressionado como se estivesse na vida. Negar estas exigências da vida é de gente tola.” Medina Carreira deteta no nosso sistema educativo não menos que um logro. “Estamos a criar uma geração, nascida no final dos anos 80, burlada e que vai ser revoltada. Não beneficiou de um sistema educativo eficiente e exigente. Não tem preparação geral, nem específica. Vamos ter um país de velhos, com esta geração a pagar as dívidas que hoje se contraem. E sem educação.”

*ADVOGADO E EX-MINISTRO DAS FINANÇAS

(ENTRE 1976 E 1978)

NUNO CRATO*, Liceu Pedro Nunes

“É necessário instituir seriedade na avaliação dos estudantes”

NUNO CRATO é filho de uma equação entre duas licenciaturas em Matemática. Começou, portanto, em casa o seu gosto pela matemática e pelas ciências. Mas foi no Liceu Pedro Nunes, onde estudou entre 1962 e 1969 e onde residem as suas melhores recordações de estudante, e de rapaz, que estes interesses foram devidamente estimulados. “Todo o liceu foi muito marcante para mim.”

Foi o tempo da “descoberta das coisas, desde a amizade aos jogos, à poesia, à ciência e à especulação”. O pátio era o seu posto preferido, embora fosse dos primeiros a recolher às salas de aula. “A minha disciplina favorita era a Física, em que tive o privilégio de ter como professor Rómulo de Carvalho, com o pseudónimo literário de António Gedeão.” Se tivesse de avaliar — salvo seja — os seus professores, diria isto: “Havia os maus e os bons. Mas em todos transparecia respeito pelo conhecimento e pela cultura. Talvez o que mais me tenha marcado foi esse espírito geral de gosto pelo conhecimento e gosto pela racionalidade.” Foi por essas vias que despertou o seu talento. E talvez tenha sido isso que se perdeu no ensino algures na curva do tempo. Se tivesse de situar o ponto de rutura entre outrora e o que é hoje o ensino, apontaria para “os últimos anos da década de 1980, altura em que o ensino começou a ser dominado por uma série de ideias pedagógicas ditas “modernas” mas na realidade retrógradas, que tinham feito o seu curso nos Estados Unidos a partir dos anos 1920.”

Uma política de ensino que Nuno Grato classifica “desastrosa” e exige medidas céleres. “Há muitas mudanças urgentes. É necessário instituir seriedade na avaliação dos estudantes, o que cada vez me parece mais difícil enquanto o Gave (Gabinete de Avaliação Educacional, o organismo que faz as indigentes provas e exames oficiais) estiver na dependência do Ministério da Educação. Estabelecer metas de aprendizagem e conteúdos claros, coisa que a atual ministra defendeu, mas não vai conseguir estabelecer com as pessoas que nomeou para o efeito. E é preciso maior seriedade na formação científica dos futuros professores — instituir um exame de entrada na profissão seria um primeiro passo fundamental.” Mas nada disto será possível se, em paralelo, não se voltar a “destacar o papel do ensino como transmissão organizada de conhecimentos e dar verdadeira autonomia às escolas e aos professores. O Ministério da Educação deveria promover a avaliação de resultados e deixar de controlar processos. Faz exatamente o contrário”. No Pedro Nunes, quando Nuno Grato ali estudava, era ao contrário.

* PROFESSOR CATEDRÁTICO DE MATEMÁTICA E ESTATÍSTICA

NO INSTITUTO SUPERIOR DE ECONOMIA E GESTÃO

António Câmara*, Liceu Pedro Nunes

“Falta criatividade no ensino português”

“(…) António adaptou-se facilmente ao Pedro Nunes — que frequentou entre 1964 e 1971 —, até porque morava na Lapa, na vizinhança. “Não era um aluno atento e as notas também não eram nada de especial.” Interessava-se sobretudo pela Matemática e pela Física, não fosse o seu professor Rómulo de Carvalho, que ali não vestia o seu alter ego.

“A qualidade geral dos professores era excelente. Havia qualidade intelectual acima da média. Os estudantes também. E havia exigência.” Porém, “em retrospetiva, acho que não era um ensino especialmente orientado para a criatividade. Era um ensino com fundamentos excelentes, mas na tradição analítica e não na tradição exploratória. Mas a qualidade do ensino e dos professores era elevada.”

“Quando cheguei aos Estados Unidos e trabalhei nas grandes universidades americanas senti que a minha preparação do liceu era ao nível dos liceus de elite americanos.”

Décadas depois, “a falta de criatividade no ensino português é algo que se mantém inexplicavelmente. Tanto no secundário como na universidade ainda não se percebeu a importância da criatividade. O ensino em Portugal é convergente e raramente divergente”.

Convém acrescentar que “a Internet mudou e baralhou tudo. E começa a ter consequências no ensino. A linguagem vídeo, por exemplo, é absolutamente crucial e ainda não chegou devidamente ao sistema de ensino. Os professores precisam de adaptar-se. Tem de haver disciplinas e cadeiras muito mais abertas. A nossa taxa de insucesso escolar é em pri- meiro lugar o insucesso do sistema de ensino”. Uma das consequências: “Não há massa crítica que puxe o país.”

E cai no vácuo uma frase que vem do liceu e é o seu lema: “Não cuides de saber, antes de experimentar.” Para citar o próprio Pedro Nunes.

* FUNDADOR DA YDREAMS, ASSISTENTE NO MIT, PROFESSOR CATEDRÁTICO NA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA E PRÉMIO PESSOA 2006

Marçal Grilo, Liceu Nun’Álvares

“As escolas precisam de lideranças fortes”

A Educação ainda é a sua paixão. Mas a relação está cada vez mais crítica. “A educação sólida que tive no liceu formou-me.” Hoje, as escolas “talvez não façam isso”. Na vertigem dos anos 60, quando ali estudou, existia a figura de reitor. “Em moldes diferentes, as escolas precisam de lideranças fortes. Não impondo modelos, mas no sentido organizativo e de objetivos de cada escola. Faz sentido que haja um condutor da escola”. Igualmente importante, “é saber quem são os alunos, de cada escola, de cada região. Só desta forma se combate o insucesso escolar: aluno a aluno”. Assim, “têm de ser definidas metas, patamares de conhecimento. Esses patamares têm de integrar a escola e a família, que hoje em dia demite-se da educação dos filhos”.

A repetição de ano, “tem mais desvantagens do que vantagens”. Os jovens de hoje “que não tenham conhecimento, têm o futuro negro”. O título do seu livro, resume bem a coisa: “Se Não Estudas Estás Tramado”.

*ADMINISTRADOR DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

E EX-MINISTRO DA EDUCAÇÃO (ENTRE 1995 E 1999)

Irene Flunser Pimentel*, Charles LePierre

“Aprendi a relacionar as coisas, a pensar, a interpretar”

“(…) Os professores do Liceu Francês, não sendo austeros, “eram exigentes e exerciam disciplina”. Não foram razão suficiente para a tornar “numa daquelas alunas exemplares. Era muito irrequieta. Cumpria os serviços mínimos obrigatórios”. Matemática não era consigo. E a disciplina favorita, não havia que enganar: História.

À distância, o que mais lhe faz confusão era mesmo a diferença entre a secção francesa e a secção portuguesa do liceu. “Lembro-me que quando acabaram as fardas, essa diferença ‘social’ acentuou-se”. Sobre o ensino, “eu era muito contestatária, fui muito influenciada pelo Maio de 68 e era também muito crítica em relação a este tipo de ensino, ao elitismo, ao microcosmos para os filhos da alta”. Hoje, “acho que tive imensa sorte por ter aqui estudado. Aprendi a relacionar as coisas, a pensar, a interpretar. No ensino português isso não existia”. A anos-luz da questão mística do fim das reprovações, “as notas eram horríveis. Os professores não davam notas altas, pelo alto grau de exigência”. O problema “não está na reprovação, está no insucesso escolar. E a discussão deve centrar-se aqui”.

Irene cruzou-se com a ministra da Educação, Isabel Alçada, no Liceu Francês. “A Isabel era uma aluna muito boa para a média do liceu.” A indisciplina tinha remédios antigos: “Puxavam-nos as orelhas. E havia um professor que tinha as unhas compridas, que se vincavam. Nunca mais me esqueço.”

Assim como o nervosismo inerente aos exames ou as exposições orais perante os colegas. "Eu sou de esquerda, toda a gente sabe. Mas a esquerda teve algumas culpas no nosso sistema educativo. Houve uma altura em que se passou a achar que a Educação devia Ser uma coisa lúdica. Sou muito a favor da avaliação. Dos professores e dos alunos. A escolha criteriosa dos professores seria um bom começo.” Mais tarde, a História agradece.

* HISTORIADORA E PRÉMIO PESSOA 2007

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