O país político e mediático discutiu esta semana duas questões momentosas do foro psicanalítico sem o esclarecimento das quais, juram líderes e gurus, Portugal não singrará. A primeira é a metamorfose do “animal feroz” em “português suave”, conforme enunciado e tese do grande mestre em frases de belo efeito que continua a ser o ex-director do defunto “O Independente”. Trata-se de avaliar se, com a derrota nas europeias, o primeiro-ministro se tomou mais humilde e cordato, como pretendem as oposições, enquanto intérpretes únicas e fidelíssimas daquilo que será o desejo dos eleitores... incluindo os do PS. Se mudou, isso significa que cede ao oportunismo e ao marketing eleitoral, pecado em que as oposições jamais caíram ou cairão, como se sabe. Se Sócrates não mudou, então isso quer dizer que se tomou irrecuperável para a sociedade política da modéstia, da autenticidade e das boas maneiras, qualidades que são, como também é sabido, apanágio de todos os líderes em Portugal. Basta olhar para Paulo Portas e Francisco Louçã.
A segunda questão em debate é de natureza ainda mais complexa e visa a explicação da dita mudança de estilo e de atitude. Como o paciente no psicanalista, Sócrates tem de começar por reconhecer os erros e nomeá-los um a um. Sem essa confissão prévia, não tem cura possível... embora com ela também não tenha. Se enumerar todos os erros que cometeu, as oposições dirão que, por causa deles, o primeiro-ministro não merece ser reeleito. Além de que o próprio acto de assumir os erros será sempre, claro está, um mero exercício de falsa humildade. Se se recusar a fazê-lo, tal quer dizer que continua arrogante e intratável, que nada aprendeu com a derrota nas europeias e que, por isso, não merece ser reeleito. É muito fácil, como se vê, ser oposição em Portugal nos dias que correm.
Tudo isto poderia fazer algum sentido se os pecados de Sócrates ─ estes que agora lhe apontam de assumir uma pose diferente depois de ter perdido as europeias ─ fossem um exclusivo seu. O censurador CDS/PP, por exemplo, já foi, sob a mesma liderança de Paulo Portas, várias coisas e o seu contrário. E, quanto a poses e atitudes, arrogância e falsa humildade, o mínimo que se pode dizer é que Sócrates tem muito a aprender com os outros líderes ─ exceptuando talvez Jerónimo de Sousa ─ e com pelo menos dois terços da classe política, para não falar de outros sectores que lidam de perto com ela.
Se assim não fosse, jamais o primeiro-ministro teria dito a tal frase suicida na SIC-Notícias. O “estou muito contente comigo” é uma pérola que vai ser exibida e glosada até à exaustão nos tempos de antena para as legislativas. E o curioso é que ela diz tudo sobre a propalada mudança de Sócrates, desmentindo-a categoricamente e respondendo com um ‘não’ rotundo à pergunta da canção de Sérgio Godinho: “Pode alguém ser quem não é”?
No fim desta semana de catarse pós-eleitoral, feita com uma moção de censura inútil e uma entrevista falhada, o mais certo é as oposições descobrirem que, afinal, o ‘animal feroz’ não mudou assim tanto. Só por desvario, aliás, é que um chefe de Governo sem tempo nem margem para mudar de políticas ou de ministros, hipotecaria a sua própria imagem a um tacticismo eleitoralista cujo único efeito seria afastar os fiéis, depois de todos os outros o terem abandonado. Sócrates pode estar politicamente fragilizado, mas não consta que tenha ensandecido.
Expresso N.º 1912 | 20 de Junho de 2009
2 comentários:
li hoje este artigo no expresso, enquanto saboreava o sol à beira-mar. uma análise honesta e inteligente. é claro que Sócrates podia ser quem não é, se quisesse e soubesse mentir e manipular muito bem. Ainda bem que não. Ainda que eu considere que viesse a lucrar mais, politicamente, se o fizesse do que mantendo a sua rota, que continuará a trazer descontentamento social. Por isso, mais que nunca, continuo a confiar nele. a gostar dele. E acho que agora mais que nunca, revelou o 'escrúpulo democrático' que ele mesmo realçou e que nunca antes vi algum político ter. Mas será que a maioria dos portugueses ainda valorizam escrúpulos e integridade?
A análise também me pareceu «honesta e inteligente», por isso a coloquei aqui. Mas, aconselho-o(a)a não se servir apenas das suas lentes cor-de-rosa, pois elas apenas lhe mostrarão o que quiser ver... Tem o direito de gostar dele e de confiar nele. Não é o meu caso! Não simpatizo nada com políticos arrogantes, que julgam que os votos lhes dão legitimidade para fazer seja o que for e que não sabem ouvir os outros...
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