Quando, como aconteceu nesta última semana, o céu cai em cima das nossas cabeças, e o horizonte se torna de chumbo, a pergunta sobre o valor da democracia torna-se natural, quase inevitável.
Isto acontece porque a democracia, com o tempo, foi-se identificando cada vez mais não só com o constante alargamento de direitos dos indivíduos mas também com uma vida de crescente bem-estar das sociedades. Ela tornou-se, para lá de um conjunto de procedimentos formais que garantem os direitos dos indivíduos e a soberania dos povos, numa cultura, ou melhor, num estilo de vida.
Nesta semana de verdadeiro horror orçamental, o que a frequente, a quase obsessiva pergunta do cidadão sobre a natureza e o valor da democracia traduz é, acima de tudo, uma brutal erosão da confiança nos seus líderes.
Uma erosão que pode vir a não ter um retorno fácil, tal a sua intensidade. E também por ter sido o culminar de um processo em que, durante meses, se ouviram vezes sem conta garantias de que não iria acontecer nunca aquilo que, precisamente, depois aconteceu.
É nestas circunstâncias que surge a pergunta: é isto a democracia?!... É que a democracia é, antes de mais, um contrato de confiança entre os cidadãos e os seus líderes, com base numa empatia e num programa. Sem confiança, desaparece a legitimidade política e fragilizam-se todas as práticas sociais, económicas e culturais de uma sociedade. A metáfora do “pântano” traduz bem este processo, apontando para as areias movediças que tudo ameaçam.
E a confiança hoje não decorre apenas das eleições, ao contrário do que, infelizmente, muita gente continua a pensar. É um facto que é lá que ela nasce, mas só a acção que se lhe segue lhe dá verdadeiro enraizamento e efectiva consistência.
A confiança consolida-se ou desaparece nesse sensível trajecto das democracias contemporâneas, que vai da proximidade das dinâmicas eleitorais à complexidade do momento governativo.
Como muitas vezes tem explicado Pierre Rosanvallon, a “democracia eleitoral acentua a personalização, a incarnação e a simplificação: é uma democracia polarizada. Pelo contrário, no quadro da democracia de decisão ou de regulação, as coisas são bem diferentes. Para que ela funcione bem, é preciso aceitar a desmultiplicação das instâncias de debate e de controlo, assumir a complexidade dos problemas e das interacções”, sem o que se cai na generalização da suspeita e da desconfiança.
O “mal português” tem sido, em boa medida, o de se continuar a fazer política como se a escolha eleitoral fosse tudo. Mesmo quando ela castiga os vencedores, diminuindo--lhes significativamente o apoio, e mesmo quando ela apenas conduz a formas de poder minoritárias. Para já não falar de situações ─ como a actual! ─ em que esses dois factores convergem, numa rota potencialmente explosiva.
É fundamental, nas democracias contemporâneas, distinguir e respeitar as duas formas de legitimidade, a da eleição e a da acção. A primeira dá, conforme o regime constitucional em vigor, origem à designação de um governo. A segunda decorre das decisões que se tomam, do seu conteúdo, da sua coerência e das suas consequências.
Enquanto a primeira se adquire no momento das eleições e vale para o respectivo mandato, a segunda é algo que se constrói, ou destrói, no tempo da governação, condicionando fortemente ─ positiva ou negativamente ─ todo o processo político. Não se perceber esta elementar distinção tem tido as funestas consequências que todos hoje reconhecemos, conduzindo com cada vez maior pertinência à pergunta “é isto a democracia?!..”.
E a propósito da democracia, vale a pena ler uma reportagem de Cristina Figueiredo no último Expresso, sobre o movimento “Cidadania para a Mudança ─ adere, vota e intervém”. É um movimento que parte de uma evidência que raramente se leva a sério, a de que a revitalização da democracia passa pela qualificação dos partidos políticos, de todos eles.
E que esta transformação só se dará através da adesão de cidadãos que apostem numa militância tão empenhada como livre. Em vez do lamento preguiçoso ou da crítica estereotipada, este movimento apela a uma intervenção lúcida dos cidadãos na vida partidária.
E lembra que, enquanto nas últimas eleições primárias americanas participaram 18,5% dos americanos, nas directas dos dois principais partidos portugueses intervieram 0,65% dos portugueses. É uma comparação que dá para fazer tremer todas as nomenclaturas, não é?
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