domingo, 17 de janeiro de 2010

Ex-Inspector da Educação pronuncia-se sobre a avaliação das escolas

UMA OPINIÃO DE UM INSPECTOR DA EDUCAÇÃO (aposentado)

A pretexto do caso-de-Fafe (lembram-se dele?), da avaliação e da classificação das Escolas e dos docentes, da(s) autonomia(s), da acção disciplinar – e do mais que adiante se verá, ou

Das vantagens da memória

1. Perante o então chamado caso-de-Fafe – lembram-se dele? –, estivemos confrontados com uma questão de fundo, que se prende com a filosofia que subjaz ao tipo de trabalho que a Inspecção-Geral da Educação (IGE) desenvolve: ao contrário da ideia que por vezes se pretende fazer passar, os Inspectores deslocam-se às escolas exclusivamente em consequência das encomendas das suas tutelas, sejam a IGE ou o Ministério! Está-lhes vedado, na prática – e nem sempre assim foi – responder às solicitações das escolas ou poder acompanhá-las em função dessas solicitações; em consequência, não possuem os Inspectores qualquer margem de autonomia para, fundamentadamente, escolher as escolas onde têm necessidade de ir; assim sendo, não está garantida uma presença sistemática dos Inspectores nas escolas, num permanente acompanhamento dialogante, trabalhando com elas e não contra elas, e tão natural quanto a dos alunos, dos docentes ou dos funcionários. É neste sentido que nós afirmamos que as escolas estão abandonadas pela Inspecção! Não defendemos, porque isso não teria qualquer sentido, que os Inspectores trabalhem em roda livre, sem prestar contas a ninguém e sem integração num plano geral de actividades que responda aos objectivos gerais da IGE. Mas, numa altura em que tanto se enche a boca com a “autonomia”, bem gostariam os Inspectores de poder reservar uma parcela do seu tempo (1/4?…1/3?…) para responder ao que as escolas directamente lhes solicitassem. Gostariam, afinal, de ser tratados como sujeitos do seu próprio trabalho e não como meros instrumentos-de-trabalho! Não temos a certeza – porque ninguém pode tê-la – de que, se esta fosse a filosofia de acção da IGE, o caso-de-Fafe não teria pura e simplesmente existido na sua vertente disciplinar interna, mas haveria certamente uma elevada probabilidade de que tal tivesse sucedido: porque a falar é que a gente se entende, certamente teria sido possível matar-a-serpente-no-ovo. (Não falo d’os-ovos-da-Senhora-ex-Ministra, porque essa é eventualmente uma área de actuação do Ministério Público). E não nos venham dizer que esta função de acompanhamento está agora a ser desempenhada por equipas de apoio das DREs, porque o sentido de humor tem limites… O que se passa é que a IGE está a sofrer do sindroma da “new public management”, com as perversões que lhe estão associadas e que hoje até os seus paladinos originais denunciam.

2. Exemplar é o caso das “Avaliações Externas” – sendo desde logo necessário afirmar que elas apenas são possíveis pela imposição aos Inspectores de ritmos e de horários de trabalho chocantes, dignos da revolução industrial do século XIX (bem como pela utilização abusiva dos automóveis dos Inspectores, dos telemóveis dos Inspectores, da internet paga pelos Inspectores, dos seguros da viatura pagos pelos Inspectores e da ausência de um Seguro Profissional de Responsabilidade Civil). Mas não podemos deixar de denunciar a IGE quando esta dá a entender que este trabalho não se enquadra numa encomenda da tutela, antes é consequência de uma solicitação voluntária das escolas, como se todos não soubéssemos que esta solicitação voluntária é, ela sim, consequência do Despacho nº 20131/2008, dos Ministérios das Finanças e da Educação, sobre as implicações da Avaliação Externa na avaliação/classificação dos docentes (implicações que o próprio Conselho Nacional da Educação considera como uma das fragilidades originais do modelo). E é pelo menos estranho que nos “Objectivos da avaliação externa” não apareça esta ligação umbilical ao Despacho atrás referido – quando sabemos que, por força dele, da avaliação externa resulta uma classificação! É também significativo que esta classificação-para-o-SIADAP nunca apareça explícita nos objectivos da avaliação externa assinalados no n.º 14 do “Boletim dos Professores”, da responsabilidade do Ministério da Educação. Como todos sabemos desde pelo menos os finais dos anos cinquenta do passado século – há quem o saiba desde Comenius –, pode existir avaliação sem classificação, mas nunca esta sem aquela. Deve estar cometido à IGE desenvolver prioritariamente a primeira – e de modo ainda mais intensivo, e com sequencialidade, ao serviço da melhoria das escolas –, mas não exclusivamente a segunda –, ao serviço da ex-Ministra da Educação e do SIADAP para docentes. (Aliás, e porque qualquer avaliação tem de ser assumida sem ligeireza e sem pressões, lembramos que o Sindicato dos Inspectores da Educação e do Ensino/SIEE, numa “Conferência de Imprensa” realizada em 30 de Outubro de 2007, denunciou a não-existência de condições que permitissem aos Inspectores integrar o processo de avaliação do desempenho dos docentes coordenadores – como a tutela pretendia; e que o mesmo Sindicato dirigiu em 11 de Novembro de 2008 uma “Carta Aberta” sobre idêntica matéria ao então Secretário de Estado Adjunto e da Educação). No caso em apreço, porque desagua numa classificação instrumental, a avaliação externa transforma-se num exercício muito arriscado! O duo Maria-de-Lurdes-Rodrigues-&-Sócrates, interessado numa classificação a todo o custo, estava pouco preocupado com o risco do exercício e com a pesada responsabilidade a que submeteu os Inspectores. “A entrevista em painel é o método essencial usado pela equipa de avaliação externa para dialogar com a comunidade educativa e para recolher informação”, diz o documento oficial da IGE sobre a matéria. Mas estamos a falar de painéis que – tendo em conta a sua duração global, o número de questões e o número de participantes que potencialmente implicam – concedem uma média de 33 (trinta e três!) segundos a cada participante/questão/painel, e estamos a partir do princípio absurdo de que a equipa inspectiva não abre a boca, isto é: 33 (trinta e três!) segundos para, apenas ouvindo, “dialogar” e “recolher informação”. É querer meter o Rossio na Betesga! Isto não é um painel – isto é um contra-relógio. No plano científico, painéis deste tipo não podem senão ser classificados, na melhor das hipóteses, como “etnográficos” ou “impressionistas” – mas, em contrapartida, exige-se aos Inspectores que desses painéis resultem relatórios objectivos e afirmativos, com todas as ponderosas consequências que atrás enunciámos. A verdade é que, há alguns anos atrás, a IGE desenvolveu um programa de avaliação integrada das escolas que, pesem embora alguns deméritos, possuía a extraordinária virtude de as não pretender classificar – nem directamente, nem por arrastamento. Aliás, estamos convictos de que foi a sensatez de assumir esta virtude que levou ao seu cancelamento, incapaz como foi de agradar a tutelas amantes de rankings… Na avaliação externa – na classificação das escolas, porque é disso que se trata –, esta lufa-lufa obreirista da Inspecção assenta numa base única: a ex-Senhora Ministra possuía uma agenda política para um ciclo eleitoral de quatro anos e, porque o tempo não é condicionável, condicionou o trabalho da Inspecção não às necessidades das escolas, o que seria excelente, mas à sua agenda própria! Eis o pecado original das avaliações externas, consequência da instrumentalização da IGE pela ex-Senhora Ministra! Vai a nova Ministra permanecer no erro – mesmo após o histórico acordo assinado com os Professores?… Se a ex-Senhora já é “ex” – por que é que a avaliação externa já não é “ex” também?…

3. Falta claramente sentido de equilíbrio à filosofia da IGE. Estamos perante uma Inspecção-Geral da Educação ou uma Inspecção-Geral do Ministério da Educação? (esta pergunta, como é óbvio, não possui idêntica pertinência no que se refere à IGMCTES, dado o particular estatuto de autonomia consagrado para o ensino superior); queremos uma Inspecção do Estado ou uma Inspecção do Governo de turno?; queremos uma Inspecção ao serviço das tutelas ou ao serviço dos estabelecimentos de educação e ensino?; queremos uma Inspecção sob tutela do Governo, ou da Assembleia da República, ou de ambos? Devemos dizer que, numa instituição equilibrada, gozando de autonomia, estas perguntas não fazem qualquer sentido – porque deveria ser possível responder decididamente “sim” a todas, abandonando visões dicotómicas e simplistas sob a capa do “ou (…) ou (…)”. Estas perguntas apenas reforçam a ideia de que, independentemente dos exemplos de circunstância assinalados neste texto, não são de natureza técnica as grandes questões da IGE – antes relevam da filosofia da instituição e das opções de política educativa que a enquadram.

4. Quanto à bondosa tese de que a acção disciplinar da IGE – esse lobo mau que obrigaria as criancinhas a comer a sopa –sofreu um virtuoso decréscimo, bem sabemos que isso pouco tem a ver com a IGE e se deve antes de tudo à transferência legal da competência da instrução para as escolas. Trata-se, aliás, de um autêntico presente envenenado para as escolas e para os docentes, presente embrulhado pelo Ministério em papel de lustro da marca “autonomia”– como o caso-de-Fafe veio demonstrar bem a propósito, logo seguido pelo caso-da-Senhora-Professora-de-uma-Escola-de-Espinho… Tal como nós mesmos havíamos oportunamente previsto, a instrução da acção disciplinar, particularmente da mais relevante, seria naturalmente reencaminhada para a IGE pelas escolas, por força não apenas da ausência nestas de condições que permitam esse exercício, mas também como resultado das novas disposições, cruzadas, assumidas em sede do novo “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas”, por um lado, e, por outro, da lei que “Aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas” – e o reencaminhamento foi exactamente o que sucedeu no caso-de-Fafe, e no caso de Espinho, ambos exemplares a este título. E, embora a sua existência seja louvável, não é com o apoio do site da IGE, nem com um apoio esforçado e de retaguarda de alguns Inspectores, que se dá um contributo estruturado para a resolução de questões tão complexas e com tão graves implicações. E não vale a pena virem acusar os Inspectores de terem saudades do exercício da acção disciplinar: o SIEE foi o único que, publicamente, na “Carta Aberta” atrás referida, se opôs à tentação da tutela de resolver pela via disciplinar, com ameaça e chantagem nem sequer disfarçadas, problemas ligados ao atribulado processo de avaliação dos docentes!

5. Parece-nos que fica agora mais claro por que devemos ter presentes alguns ensinamentos a pretexto do caso-de-Fafe. O Dr. Almeida Costa, que foi o primeiro Inspector-Geral do Ensino – era assim que então se chamava –, dizia que a Inspecção era “a consciência crítica do sistema” educativo, e ainda que, no terreno, devido ao isolamento e às pequeníssimas equipas em que naturalmente somos forçados a trabalhar, “cada Inspector é a Inspecção”. Assim, e ao mesmo tempo que não podemos deixar de usufruir de grande autonomia, recai sobre cada um de nós uma proporcional responsabilidade. Não vivemos de saudades, excepto, como o poeta nos ensina, das “do futuro”. Isto é, saudades de um passado em que um-futuro-começado-a-ser-construído foi interrompido (apenas interrompido…) pelo pensamento único consagrado na desumanização da “new public management” e do SIADAP. Dito de outro modo, aparentemente simplista: continuo com o vício de defender os Inspectores. Seria mais fácil continuar calado, mas não me peçam que adquira um hábito novo aos 63 anos de idade, nem me argumentem que não podemos “dar tiros nos próprios pés” – quando a pior alienação passa por convencerem-nos que são nossos os pés que afinal são de outros. Preparados para um outro caminhar e para um outro caminho – um caminhar e um caminho que não são os nossos.

José Calçada

(Docente do ensino liceal/secundário de 1970 a 1982; Inspector da IGE de 1982 a 2009; aposentado há três meses e meio)

via A Educação do Meu Umbigo

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