domingo, 23 de novembro de 2008

OPINIÃO > Faranaz Keshavjee: «Direitos humanos? Sim, primeiro em nossa casa»

Como podemos julgar outros se, entre nós, permitimos que casos como o do Baby P. ou o de Joana possam acontecer?

Há dois anos, contei aqui uma história de Abu Hayyan al Tawhidi, um homem do renascimento muçulmano do tempo dos xiitas Buyidas, a quem reconheço a grandiosidade no equilibrio entre a racionalidade e a fé, e um notável espírito humanista. Vou contá-la de novo para falar de defesa dos direitos humanos, a começar em nossa casa.

Al-Tawhidi conversava com um outro pensador - Abu Suleiman - que lhe perguntava a razão por que a sua abertura e ecumenismo face a outras religiões e culturas não faziam dele outra coisa senão um muçulmano. Tawhidi responde: "É como se eu estivesse a caminhar pelo deserto num dia pleno de sol, céu aberto, visibilidade no horizonte, clara e inspiradora. Mas eis que nessa caminhada se me depara a adversidade: o céu começa a ficar carregado de nuvens, fica cinzento, o horizonte invisível, ameaçando uma forte tempestade. Avisto ali perto uma tenda. Corro, entro nela, procuro abrigo, refúgio, protecção. Começa a chover a potes! Estou satisfeito, tenho casa. No entanto, de um lado da tenda está uma fenda, por onde a água entra. Olho através da janela e contemplo outras soluções. Vejo, lá adiante, uma outra tenda. Parece segura, resistente. No entanto, olhando mais atentamente, percebo que nela também existe uma fenda, por onde a água entra, não no mesmo lugar, mas noutro. E digo a mim mesmo: sair daqui, passar no meio da tempestade, enterrar os meus pés na lama, e entrar noutra tenda, que afinal também tem uma fenda, não neste preciso lugar, mas noutro... ahh! deixa-me antes fazer desta onde estou a minha casa. E é nesse sentido que sou um muçulmano!".
Esta história lembra a humildade do nosso saber e poder. Muitas vezes olhamos para outros lugares e vemos fendas grandes, na lei, justiça ou sociedade. Não temos a coragem de humildemente reconhecer que, mesmo que com contornos diferentes, as coisas não são perfeitas em nossa própria casa. A isto chama-se etnocentrismo e complica muito as relações humanas. Somos vulgarmente etnocêntricos quando falamos de direitos humanos.
Aqui há umas semanas, o editorial de Nuno Pacheco falava de uma situação que nos chocou a todos sobre o apedrejamento até à morte de uma criança que havia sido violada na Somália, e com a conivência de toda a sociedade. Perguntava Nuno Pacheco como podemos negociar com gente, como a Al-Qaeda, que advoga este tipo de procedimentos? É uma questão complexa, e, a meu ver, não se resolve só dialogando. Existem outras soluções bem mais inteligentes que algumas organizações internacionais e muçulmanas já puseram em prática. Elas prendem-se essencialmente com a colaboração da sociedade civil para criar infra-estruturas para o desenvolvimento económico, social e político. Uma ideologia religiosa só não enche a barriga; a pobreza, a ausência de instituições de ensino de qualidade e de pensamento crítico, as infra-estruturas de comunicação e transportes, a própria esperança de um povo que sabe que pode trabalhar sobre o que é sua propriedade e receber os benefícios dela sem que uma mão maior e mais forte lhe roube o pão que ele mesmo amassou, tudo isto é que deixa terreno aberto para a penetração de ideologias militantes. A crença mexe com elementos do ser muito profundos e sensíveis e pode levar a humanidade a fazer as coisas mais notáveis, mas também as mais horríveis.
No que diz respeito à violação de direitos humanos, o que é absolutamente incoerente e inconsistente é a nossa falta de humildade em reconhecer que somos igualmente falhados nessa matéria. Pois, senão, não se aceitariam situações como a morte de muitas mulheres por agressão dentro das familias, e sob a cumplicidade da própria sociedade. Os números assustadores que aparecem são apenas os das que aparecem! Outras haverá que nunca vêm a público, muitas vezes na cumplicidade de mais olhares e ouvidos. Como podemos julgar a morte de crianças noutras realidades se entre nós, onde preparámos especialistas e leis, e temos técnicas científicas para identificação de grupos, famílias ou indivíduos de risco, permitimos que casos como o do Baby P., em Inglaterra, ou a Joana portuguesa possam acontecer? Que valores poderemos fazer valer numa negociação quando somos nós mesmos incoerentes, inconsistentes e usando sistematicamente políticas bivalentes assentes em poderes corporativos?
Estou convencida de que há muito a mudar no mundo, mas precisamos, primeiro, de ter a humildade de reconhecer as fendas dentro das nossas tendas e remendá-las e, só depois, ter a pretensão de ajudar os outros a remendar as deles!

Faranaz Keshavjee

Estudiosa de temas islâmicos (Faranazk@sapo.pt)

Fonte: PÚBLICO 23.11.2008

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