domingo, 6 de fevereiro de 2011

«O modo burocrático de inovar»

A organização burocrática mostra-se incapaz de se corrigir em função dos seus erros e, se “a sua principal característica é a rigidez, não pode naturalmente adaptar-se facilmente à mudança e tenderá a resistir a qualquer transformação” (Crozier, 1963:239). Para contrariar as disfunções que, permanentemente, segrega (Merton), ela autocorrige-se pelo círculo vicioso burocrático (Gouldner, 1954 e Crozier, 1963).

No entanto, a mudança acaba por ser inevitável. Contudo, ela só é possível como mudança de crise, concebida por um quadro qualificado da máquina administrativa ou por ela cooptado, conduzi da de cima para baixo, e deve ter aplicação universal de modo uniforme em todas as escolas. Na verdade, num sistema centralizado e burocrático, a introdução de mudanças na pedagogia da escola — seja essa alteração no conteúdo ou na forma, na estrutura pedagógica ou na prática pedagógica, diga respeito aos alunos, aos professores ou aos processos — só é possível através da produção de regulamentos administrativos: decretos-leis, decretos simples, portarias, despachos normativos, despachos, circulares, ordens de serviço, instruções, esclarecimentos, etc.

A inovação aplica-se de forma (pretensamente) uniforme a todas as escolas, legitimando a concepção que identifica uma inovação com a legislação que a introduz, de modo que “a inovação que é um acto que ocorre nas escolas é diluído num acto que ocorre nas secretarias dos departamentos centrais; a inovação que por natureza é lenta, ou pelo menos, leva certo tempo a introduzir, é transferida para um acto por natureza rápido e instantâneo” (Formosinho, 1999:19).

Este tipo de inovação por decreto, cujo modelo se baseia na filosofia de que no topo se inova e na base apenas se executa, é caracterizado por Lima (1988:58-59) como um paradigma normativo-taylorista. Com efeito, as reformas produzidas por iniciativa do poder político e da sua administração central visam introduzir mudanças estruturais, sejam elas derivadas da pressão das críticas da sociedade e/ou da evolução dos saberes educacionais ou, apenas, motivadas por razões de estratégia de afirmação pessoal ou partidária. Elas “correspondem, normalmente, a respostas globais (decididas centralmente sem terem em conta a diversidade dos contextos) para problemas locais que são os que, em cada escola e sala de aula concretas, afligem, de maneira e por razões diferentes, cada responsável escolar, cada professor e cada aluno” (Barroso, 2001). Mesmo quando se apropriam de inovações produzidas por iniciativa de “minorias activas” de professores ou movimentos pedagógicos que parecem desfazer a uniformidade que constitui a “imagem de marca” da pedagogia colectiva, a lógica de generalização das “boas práticas” pelo processo burocrático não belisca o “núcleo duro” da organização da classe que “permanece, nos horários, na constituição das turmas, na divisão das disciplinas, na transmissão do saber, no processo de classificação dos alunos, na relação pedagógica” (Barroso, 2001 :80). Este é também o diagnóstico realizado nos Estados Unidos por David Tyack & Larry Cuban após um século de reformas:

“As bases da gramática da escola, como a própria configuração da classe, têm permanecido estáveis ao longo das últimas décadas. Poucas têm sido as mudanças na maneira como as escolas dividem o tempo e o espaço, classificam os alunos e os distribuem pelas classes, agrupam os conhecimentos em disciplinas e concedem graus e créditos como evidências de aprendizagem. (...) A continuidade da gramática da instrução frustrou gerações de reformadores que sonharam alterar estas formas estandardi-zadas” (cit. in Barroso, 2001 :80-81).

Deste modo, torna-se claro que o sistema burocrático centralizado é intrinsecamente inadequado à gestão escolar pedagógica:

“Sendo a relação pedagógica uma relação pessoal não pode ser sujeita a sistemas que se baseiam na impessoalidade. Sendo a relação pedagógica uma relação de pessoas concretas dificilmente se sujeita a esquemas que se baseiam na abstracção. Sendo a relação pedagógica uma relação que se destina a transmitir conhecimentos, valores, normas e atitudes a crianças e adolescentes que diferem grandemente entre si por diferenças de tempera-mento, de origem social, meio ambiente, aptidões, interesses, necessidades e motivações, transmissão feita por pessoas também diferentes, dificilmente aceita soluções pedagógicas baseadas na uniformidade. Devendo a relação pedagógica ser uma relação pessoal próxima não se compadece com sistemas que se baseiam na distância e afastamento entre quem decide e as pessoas interessadas na decisão. Podendo a relação pedagógica ocorrer entre pessoas muito diferentes em contextos muito diferentes não é facilmente enquadrável no princípio da ‘pedagogia óptima’” (Formosinho, 1999:18).

Contudo, o sistema burocrático perpassa por todo o currículo escolar, reservando aos serviços centrais os poderes de decisão substantiva e aos professores tarefas de execução.

(...) Deste modo, as reformas falham porque se limitam a aperfeiçoar o que já existe, sem abalar os princípios, modelos de referência e modos de organização; elas falham “não tanto por causa do seu conteúdo, mas pela sua forma e pela estratégia de execução”, por estarem imbuídas de uma concepção normativa de mudança que não considera a especificidade dos contextos, o carácter construído das situações educativas e a autonomia relativa dos actores escolares (Barroso, 2001 :82 e 83).

Formosinho, João, Machado, Joaquim, Oliveira-Formosinho, Júlia (2010). Formação, Desempenho e Avaliação de Professores.

via Terrear

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