sábado, 25 de dezembro de 2010

OPINIÃO > Manuel Maria Carrilho: «Uma asfixiante ortodoxia»

“Mas riem-se de quê?”, foi a pergunta que mais me ocorreu ao ver as sucessivas reportagens televisivas sobre o último Conselho Europeu, na semana passada.

É que, perante uma crise que é sem dúvida a mais grave, a mais difícil e a mais perigosa que o projecto europeu enfrentou na sua existência, a generalizada alacridade dos líderes europeus dava uma ideia de inquietante irresponsabilidade, que infelizmente as conclusões do Conselho vieram confirmar.

Tudo acabou por se resumir à mera aprovação do que já tinha sido abundantemente anunciado nos dias anteriores. A par com o reforço do capital do Banco Central Europeu em cinco mil milhões de euros, avançou-se para a criação de um dispositivo que visa garantir no futuro uma maior estabilidade financeira da Zona Euro, com a institucionalização do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que, a partir de 2013, substituirá as soluções de recurso que a crise impôs no decorrer do último ano.

Para o efeito, é necessário fazer uma alteração ao Tratado de Lisboa, pelo que se aprovou também uma fórmula especiosa, para tentar que a sua ratificação se faça rapidamente e sem grandes controvérsias nas opiniões públicas europeias. O que parece longe de estar garantido: basta pensar que nenhuma alteração ao Tratado de Lisboa se fará sem o acordo do Parlamento Europeu, onde já se preparam, a pretexto da alteração agora anunciada, outras propostas de alteração não menos importantes.

Confirmou-se ainda a recusa taxativa de todos os passos no sentido do governo económico europeu, nomeadamente os que apontavam para a criação das obrigações europeias, as eurobonds, e para a institucionalização de uma agência europeia da dívida. De novo, apesar de não ser inesperado, só apareceu a iniciativa inglesa de congelar o orçamento da UE até 2020, orçamento que é hoje de 1% do PIB europeu. Iniciativa que, ao que parece, colheu grande apoio.

O quadro do que aí está e do que aí vem não é, assim, difícil de antecipar. Os planos de austeridade tornaram-se, por toda a Europa, no rosto de todas as políticas (ditas) possíveis. O próximo ano será um ano de menor crescimento e maior dívida, com o BCE a fazer às escondidas bem mais do que diz, e a valer enquanto puder aos países mais aflitos. A recessão é inevitável, e as consequências sociais serão de uma intensidade e de uma magnitude há muito desconhecidas.

Curioso é que, nas mesmas circunstâncias, a América faça o contrário, injectando milhares de milhões de dólares na economia. E, mais curioso ainda, é tentar perceber para onde vai, para que vai servir todo esse dinheiro, num contexto de fraca procura e de abundante liquidez. É possível que ele se dirija para zonas de forte crescimento (China, Índia, etc.), mas é também muito provável que ele venha a incentivar o valor de activos e a criação de bolhas, além, naturalmente, de poder apoiar... a especulação contra o euro!

Trata-se, contudo, dos dois lados do Atlântico, das duas faces de uma mesma ortodoxia, a do capitalismo financeiro, no caótico declínio do seu esplendor. E esta doutrina lembra cada vez mais a vulgata comunista quando, às críticas que se lhe faziam, respondia com o mais tranquilo cinismo garantindo que todos os problemas se deviam não à inadequação das suas ideias ou às perversões da sua concretização mas precisamente ao facto de o comunismo não ter “ainda” sido integralmente assimilado ou construído.

Com o capitalismo financeiro estamos hoje num mundo análogo, em termos de arrogância, de dogmatismo e de cegueira. Quanto maior e mais desesperante é a crise, mais se insiste em que o remédio está em retomar as vias que estiveram na sua origem, como se se tratasse de uma patológica compulsão de repetição.

O “financeirismo” resiste como uma ideologia asfixiante e globalmente disseminada, em que o deslumbramento com o virtual (os produtos financeiros em circulação “correspondem” a um valor que é doze vezes o PIB mundial) tomou o lugar simbólico e messiânico dos amanhãs que cantam. Em que a incontornável austeridade pretende ser, através das contínuas metamorfoses de uma modernidade balofa, a mediação sacrificial para um paraíso tão prometido como adiado. E em que as elites dirigentes têm cada vez mais, tanto pelo seu desprezo pelos seus concidadãos como pela corrupção que as atravessa, a forma de uma pura nomenclatura política. Eles riem-se, claro, mas não será já, como diz o provérbio popular... de nervos?

Diário de Notícias

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