Conheceu-a pelas vindimas, nas serranias do Alto Douro, quando as encostas pareciam escorrer sangue e oiro, e dos vales se erguiam as vozes das «rogas» entoando seus cânticos pagãos. Loura, dum louro crespo e queimado dos sóis e dos frios, branca de neve mas tostada da intempérie e da sujidade, batendo o compasso das canções com os pés descalços na rocha dura dos caminhos, ou de cavaquinho a tiracolo para os peditórios pelas quintas, ela teria pouco mais de quinze anos, e nos olhos verdes uma ardente cintilação, que vinha dos remotos tempos de Suevos e Visigodos. Foi da boca dela que ele recolheu as mais belas canções da região. Ouvindo-a cantar e tocar, amou-a logo. Era poeta, pobre, e vinha da Cidade. Ela nascera e vivia num lugarejo perdido nos boqueirões da Serra. Ele tomou-lhe da mão e disse: «Tu serás uma Princesa. Hei-de coroar-te de rosas e brilhantes, vestir-te de sedas e arminhos. Os teus pés calçarão sandálias douradas…»
Amaram-se. Quando ele regressou à Cidade, ela acompanhou-o, levando consigo o cavaquinho. Foram morar num bairro antigo e pobre, de ruas íngremes e sinuosas, numa água-furtada donde se avistava o «mar» coalhado de vapores.
Viviam de quase nada. Ele versejava, fumava, sonhava, ficava na cama até tarde. Amavam-se noite e dia com fervor e paixão, ele sempre de olhos mergulhados na verde joalharia dos olhos dela. Ela era agora alva, rósea e diáfana como uma Princesa. Em vez da prometida coroa, entanto, tinha apenas os caracóis de ouro dos cabelos; e nos pés, em lugar das sandálias douradas, modestos sapatos de trança. Viveram assim, por muito tempo, meses, anos talvez, sem dar por isso: felizes. Até que um dia, não tendo em casa o que comer, nem esperanças de o ganhar, ela desceu da água-furtada à rua, em busca de um freguês que lhes pagasse o custo da ceia de Natal.
José Rodrigues Miguéis, “Simples Conto do Natal”, Vida Mundial, 30/12/76
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