segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Baptista-Bastos escreve sobre José Gomes Ferreira

Os cadernos necessários de José Gomes Ferreira

03 Dezembro 2010

Baptista-Bastos — b.bastos@netcabo.pt

As tertúlias nos cafés e nas cervejarias fizeram parte da educação intelectual, política e moral de muitos rapazes da minha geração.

Frequentei muito aqueles grupos de jornalistas, escritores e artistas heterogéneos que falavam e discutiam dos assuntos que a Imprensa não publicava, por proibidos. Havia tertúlias de Esquerda e de Direita, mais de Esquerda do que de Direita, seja dito. De manhã, no Brasileira do Chiado, eram jornalistas os que se amesendavam. De tarde, no Café Chiado, a conversa era praticada por escritores, músicos, cientistas. A esta aparecia quase sempre Aquilino Ribeiro, venerado por gente da estatura de José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Alves Redol, Augusto Abelaira, Manuel da Fonseca, Manuel Mendes, Leão Penedo, Rogério de Freitas, Fernando Lopes-Graça. Por vezes, depois do almoço (o Café Chiado servia uns bifes esplêndidos) surgia a figura esquiva e um pouco sombria de Virgílio Ferreira. E outros.

Depois, os bancos começaram a tomar conta dos locais e a atirar com os convivas para outros cafés e pastelarias da cidade. O Tony dos Bifes foi, acaso, o último desses redutos. Carlos de Oliveira chegava a meio da tarde. Aos pouco iam assomando os amigos. É enorme a lista de cafés desaparecidos, e todos eles cheios da história das nossas paixões, das nossas inquietações e das nossas desavenças.

Falo desses tempos, felizmente mortos e enterrados, agora, que saiu, com a chancela da Dom Quixote, o quinto tomo dos diários de José Gomes Ferreira, “Dias Comuns — Continuação do Sol”. Os diários do grande poeta pertenciam aos mitos urbanos daquela época. Sabia-se, e falava-se entre nós, que Zé Gomes (como os parceiros o tratavam) mantinha, há décadas, cadernos e cadernos nos quais anotava tudo o que lhe merecesse atenção. Os amigos e os seus ditos; as pequenas insídias e as menores invejas; os comentários aos livros, aos filmes, às peças, aos concertos, tudo sempre envolvido numa aura de humanismo e de simpatia pelos outros.

É um desfile impressionante de sentimentos e uma série admirável de retratos das pessoas e de seu tempo. A política e as consequências da opressão possuem um lugar importante neste filme. Zé Gomes, amenamente, não perdoa as vaidades; não oculta as suas admirações; não omite os seus prazeres e as suas críticas. De todos eles, porém, sobressai a estima, a funda admiração, a amizade sem mácula que desde sempre nutriu por Carlos de Oliveira. O rigor moral, o escrúpulo e o pudor deste último impunham o respeito que a esmagadora maioria dos outros não mereciam e lhe não suscitavam. Pequenas farpas em Cardoso Pires, em Alexandre O’Neill, em Herberto Hélder, sobretudo por questões de ordem ética e ideológica, não deixam de fazer parte do texto. E é bom de saber que nem todas as aparentes coragens e frontalidades conseguem dissimular o carácter dúbio dos protagonistas.

Na minha opinião, este volume é, talvez, o mais significativo de todos os até agora publicados. Um documento imprescindível para se perceber o mecanismo das vaidades e o que a época e as suas contingências fizeram a homens aparentemente de grande carácter. Não se trata de uma questão de coragem ou de narrar a verdade, conceitos tão escorregadios e tão difusos. Trata-se, isso sim, de, numa prosa extremamente viva e colorida, de o autor prestar o seu depoimento, pessoal como todos os depoimentos assim concebidos, mas particularmente atractivos.

Devo, a esta gente incomum, muitíssimo mais do que aqui escrevo. A aprendizagem da vida é uma construção delicada, frágil e lenta. E só muito depois nos apercebemos do significado profundo que esse tempo e esses homens que moldaram ou combateram o tempo tiveram relativamente à nossa educação.

Por vezes, José Gomes Ferreira desce aos abismos da sua alma, descreve a suas inquietações e perplexidades ideológicas, sem nunca deixar de cultivar (e exigir dos outros) um grande rigor moral e intelectual. Este livro deveria ser frequentado pelos preopinantes que por aí andam a escrever bojardas e a propalar o acessório sobre o essencial. Lê-se das exigências daquela gente que nunca abdicou dessa integridade e dessa decência cívica, sem as quais a batalha das ideias e a defesa da democracia seriam sufocadas.

Um aceno de simpatia para a Dom Quixote, que tem vindo a editar a obra do grande autor de “Poeta Militante”, e desse magistral “As Aventuras de João sem Medo”, que o próprio Zé Gomes considerava ser o seu melhor livro.

Jornal de Negócios

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