Um bom indício do modo como nos relacionamos com Portugal são as nossas autofigurações, as feitas e as por fazer. Quanto às feitas, reparemos em duas, uma popular e outra erudita.
A popular é certamente o Zé Povinho. Desde que Bordalo a pintou, foi constantemente reproduzida e encontramo-la em todo o lado. Mas que significa ao certo? Ignorância ou esperteza? De tudo um pouco, como se tem dito e escrito, em análises rápidas ou de maior fôlego. Mas é exactamente nessa indefinição que ela pode servir para caracterizar a relação que mantemos connosco próprios, ou com o país no seu todo. Coexistimos uns com os outros ― e, cada vez mais, com os estrangeiros ― em subalternidade e atraso ou em esperteza, razoável desconfiança e quase «retranca» galega?
A erudita encontra-se nos painéis de Nuno Gonçalves. Quando foram, também eles, «descobertos», logo atraíram como um íman uma atenção crescente e vivaz. Passou um século e continuam a olhar-nos, com aquelas dezenas de olhos que nos perscrutam e avisam, não sabemos bem de quê. Nunca uma obra de arte nos interrogou tanto, motivando sucessivas interpretações, tanto dela como nossas. Interpretações, aliás, que aparecem quase como urgentes, para decifrarem finalmente um enigma que é existencial e de nós todos. Como se Portugal se depreendesse dali, como «mensagem», para falar segundo Pessoa, ou como «navegação», para falar segundo Sophia...
Mais enigmaticamente ― ou sintomaticamente ― há autofigurações não feitas. Escolho uma, por de mais eloquente: estátua que nunca se colocou no pedestal do alto do Parque Eduardo VII. Fosse ou não para Nun’Álvares/Santo Condestável, tratar-se-ia sempre de um «umbigo de Portugal», quase como o de Delfos fora o do mundo. Detecta-se uma polémica em torno daquele lugar vazio, daquele pedestal agora desfeito. Como se já não tivéssemos figuração possível. Como se a relação com Portugal já não lhe encontrasse rosto.
Aqui chegámos, finalmente. Mais como interrogação do que como certeza. Vamos andando, apesar de tudo. E, muito à portuguesa, «depois se verá». O que também é já um grande saber de experiência feito.
Excerto de Portugal e os Portugueses (Assírio & Alvim, 2008), de Manuel Clemente, bispo do Porto e vencedor do Prémio Pessoa 2009.
Fonte: LER
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