“Que sociedade estamos a construir? Que mundo vem aí?” As perguntas, tornadas um pungente requisitório, foram, há dias, formuladas por um trabalhador da France Telecom, numa manifestação contra o processo de "reestruturação" da empresa, cujos resultados têm conduzido à barbárie. Vinte e quatro trabalhadores suicidaram-se, nos últimos dezanove meses, e mais treze foram socorridos quando se preparavam para pôr fim à vida.
Em nome da “competitividade” e em obediência às leis do mercado, um “gestor”, Louis-Pierre Wenes, procedeu, a partir de 2005 (ele entrara na empresa em 2002), adjuvado por Didier Lombard, à “modernização” da empresa, o terceiro operador de telemóveis da Europa e o primeiro fornecedor de acesso à Internet.
A brutalidade das decisões não olhou a meios para justificar os fins. Diz a France Press que “o plano redundou num controlo cerrado dos funcionários, dos tempos de pausa, uma pressão insuportável por ganhos de produtividade e desumanização nas relações laborais. Os comunicados dos sindicatos sublinham a incerteza organizada sobre a permanência de cada posto de trabalho, mudanças forçadas de funções, pressões insidiosas para que os trabalhadores se demitissem ou aceitassem despromoções, tentando fazê-los responsabilizar-se por essas novas situações.”
O “mercado”, o “neoliberalismo” e a globalização atingiram novos patamares de infâmia. Em Portugal desconhece-se a estatística de suicídios causados por compulsões semelhantes, e o facto de estarmos à beira dos setecentos mil desempregados deveria preocupar, seriamente, aqueles que nos governam. A desumanização que se regista no mundo do trabalho explica-se pelo facto de o “homem de organização”, quero dizer: o “gestor”, não pode permitir-se ter princípios ou escrúpulos: deve, isso sim ter reflexos.
A degradação da vida empresarial resulta dessa cartografia de horrores que consiste nos objectivos a atingir, nas etapas que se tem de percorrer, e dos lucros que terão de ser rápidos e vultosos. O “gestor” é muitíssimo bem pago para ser um cão-de-fila. Um universo sem paixões, gelado, uma mistura de indiferença humana com uma selvajaria abstracta.
“Que sociedade estamos a construir? Que mundo vem aí?” As dramáticas perguntas adquirem um novo relevo, quando se sabe que as “soluções” aplicadas pelos tais “gestores” revelam-se ineficazes e conduzem as empresas, mais tarde ou mais cedo, à falência. À falência económica e financeira, porque a falência moral já habita no corpo de quem as dirige.
A “organização”, o “grupo”, correspondem a esse capitalismo predador, que mantém uma “democracia de superfície”, feroz e impositiva, que tem aniquilado sindicatos, partidos progressistas, organizações cristãs recalcitrantes, homens e mulheres, sobrepondo uma cultura que provoca a renúncia de pensar. O poder económico a sobrepujar o poder político. Ainda há semanas, o eng.º Francisco Van Zeller, presidente da CIP, se opunha, veementemente, à casualidade de o PS estabelecer acordos, parlamentares ou outros, com o Bloco de Esquerda. A sobreposição chega a ser aberrante. E o desprezo pela democracia, mesmo tão fanada como a portuguesa, associa-se a um postulado segundo o qual estaríamos no fim das ideologias. É verdade que o PSD nunca foi "social-democrata" (quando muito, conservador-liberal), e o PS foge do socialismo como Satanás da cruz (salvo seja). Esta confusa apropriação indevida de nomes causou estragos irreparáveis na “democracia”que por aí está.
O panorama nacional é assustador. Salvam-se os bancos, em nome não se sabe muito bem de quê e de quem, e destroem-se vidas. O tema da emancipação da humanidade não perdeu prestígio nem poder. As grandes questões do trabalho, do capitalismo, das novas relações sociais, do desemprego e da subida da miséria e da fome são omissos nos chamados órgãos de informação. No caso português, a ausência destes temas obedece a indicações e a ordenanças. As mais radicais das ideias reaccionárias afloram em numerosos artigos, comentários e debates. É a “democracia de superfície” em toda a sua expressão. Repare-se que o caso da France Telecom mereceu medíocres chamadas de primeira página, e notícias reduzidíssimas no interior dos jornais. E este é um assunto que, pela sua natureza trágica e pela dimensão social que exprime, deveria adquirir enunciações mais amplas.
Há algo de dissolução rápida nas nossas sociedades. Quando os laços relacionais são tão abruptamente cortados, como na France Telecom, temos de perceber que o problema não é isolado. E que a ameaça começou a constituir como perigo imediato. Nomeemos os problemas e saibamos enfrentar os riscos decorrentes. A Imprensa e os jornalistas honrados têm uma palavra a dizer. Não será a última mas é, certamente, a mais importante. Se eu lhes merecer, contem comigo.
Baptista-Bastos
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