Parece que os socialistas ficaram muito contentes com o congresso do seu partido. E o mais contente de todos eles foi José Sócrates. Ungido como salvador da pátria e inocente vítima de inimigos inclementes, ele perguntou, comovido e lacrimejante, se os seus camaradas o seguiam, o desejavam, o amavam. Em coro, congestionados de amor e devoção, mil e oitocentos congressistas gritaram que sim. A nota e o resultado estavam dados. Só faltou o ceptro, a coroa e o manto vermelho de seda e gola de arminho. Depois, foram para casa, felizes por terem cumprido, com veneração e afecto, a liturgia da consagração.
O congresso do PS não serviu para outra coisa senão como metáfora de um particular panteísmo de linguagem e de espectáculo. É sempre assim, em qualquer reunião daquela natureza, dir-se-á. Por isso mesmo é que produzem a indiferença. A veneração quando atinge as raias da sabujice tem um preço. Um preço reconcentrado e vasto que se exprime das formas mais diversas. Uma delas é tornar oblíquo o pensamento e liquidar as ideias críticas. Nem um projecto, nem o esboço de uma teoria, nem o sopro de uma referência ideológica, nem o mais escasso resquício de vergonha interior pelo passado, pelos actos e actividades dos governos PS. Somente uma pose, uma farsa desesperada de quem abandonou o compromisso e a esperança, e se remete para um signo que se oculta noutro signo. Ana Gomes, a única que não destilou banalidades e fugiu um pouco à dissimulação, foi colocada à meia-noite para falar. Vinte socialistas esparsos e ensonados estavam na sala.
A coroação de Sócrates é uma vitória do próprio e uma nova derrota daqueles que, no PS, ainda acreditam nos ideais (que quer isto dizer?) e na possibilidade de se alterar o estado das coisas. Porém, as evidências e as comparações históricas são severas para quem embala essa fé: nenhum partido é reformável “por dentro”. A dissidência tem sido o caminho e o estigma de quem a tal se aventurou. Por exemplo: nos partidos comunistas. A lição é crucial. Mas, como não tem sido apreendida e reflectida, as forças do progresso saem cada vez mais enfraquecidas. A soma e o resto estão à vista. Estes dias últimos fazem com que fiquemos mais ensimesmados, funestos e sigilosos. Um prestamista internacional vem ditar-nos o molde dos nossos comportamentos, e achincalhar o que sobrevive da nossa dignidade. Um homem que desdenhava a petulância dos partidos e a tacanhez afectada dos políticos mudou de carril com desenvolta impassibilidade. Os factos rasgam as nossas feridas e os paradigmas volatilizam-se. Não há em quem nem em que acreditar. A honra e a decência deixaram de possuir exactos significados e transferiram-se para os territórios da ambiguidade e das evasivas. Resta-nos as palavras. E mesmo assim...
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