Santana Castilho
A confiança e a cumplicidade entre ministério e professores não estão apenas quebradas, estão pulverizadas
Já aqui escrevi que a avaliação do desempenho está longe de ser o problema, mas tão-só um epifenómeno dele. O problema começou quando este Governo assumiu como desígnio poupar, sem critério, no que é vital para desenvolver o país e promover as pessoas. Ora o ensino de qualidade requer dinheiro e tempo. Não se faz sem professores e sem escolas mobilizadas. Supõe trabalho, exigência e disciplina, coisas que os computadores a pataco e os turbo-diplomas não substituem. Mas a política seguida e a legislação que a suporta assentam na convicção inculta de que a opressão férrea sobre os professores e o laxismo a eito para os alunos operarão o milagre da multiplicação das "competências", como os tecnocratas de serviço gostam de chamar, vamos lá nós saber a quê. Este é o fio condutor que qualquer análise lúcida descortina como elo de ligação entre toda a produção legislativa do Ministério da Educação, com destaque para os três diplomas mais assassinos: o estatuto dos professores, o estatuto dos alunos e a gestão das escolas.
Nos últimos dias, assistimos a manifestações bem degradantes. Ouvimos a ministra da Educação, que tinha negado a burocracia, reconhecer com candura que o modelo de avaliação do desempenho dos professores estava cheio dela. Que, afinal, as duas simples fichas eram muitas mais e desnecessárias. Que o que ontem era dogma fora reclassificado como anátema. Que muito do que tinha sido proclamado como indispensável era, afinal, inviável e ministerialmente ultrapassável por uma portaria Simplex. Tudo com a mesma ligeireza com que os aldrabões das feiras doutro tempo convenciam os incautos a usar a banha da cobra para remover todos os males, do corpo ou do espírito. Prudentemente calada a senhora, a viscosidade do lamaçal em que esta gente se move recolheu à guarda do secretário de Estado Jorge Pedreira, que não enjeitou o mote: convocou a Plataforma Sindical para uma reunião com "agenda aberta" que, desmarcadas as próximas greves, logo fechou, esclarecendo, em hino ao patético, que "agenda aberta significa permitir às partes dizer o que entendem". Ou seja, repetir o que já sabemos, como se não estivéssemos saturados de ouvir as partes, sem que se faça o que deve ser feito. E a plataforma mordeu. Esperemos que não engula e não ceda ao Memorando II, para salvar o primeiro período.
Entendamo-nos. O ensino está num atoleiro de que não se sai com esta equipa de governantes. A confiança e a cumplicidade indispensáveis entre ministério e professores não estão apenas quebradas. Estão literalmente pulverizadas e são, por isso, irrecuperáveis. Sócrates tem de substituir a ministra da Educação. Agora, fazendo-a perceber o que Correia de Campos percebeu sozinho, ou mais tarde (mais próximo das eleições ou depois delas, se as ganhar). Mas esse é problema dele. O problema dos professores é não se deixarem arrastar para o fundo do lamaçal. Há desânimo e cansaço nos alunos e nos pais. Há transtornos e perturbações na vida das famílias e houve mesmo manifestações de separatismo por parte daqueles que cedem facilmente à primeira fresta aberta para melhorarem a vida e lamberem migalhas de poder. Mas há, a par disso e muito mais que isso, em nome da escola pública, da justiça e da dignidade docente, uma resistência que não pode ser perdida, seja qual for o truque ou a estratégia intimidatória.
Porque falo de lamaçal, não posso deixar sem referência o quadro deprimente (e reincidente) que a Assembleia da República nos proporcionou. Como é público, o CDS fez uma proposta de suspensão da avaliação do desempenho dos professores. No momento da votação, 48 deputados estavam ausentes da assembleia. Destes, 28 pertenciam ao PSD, que também reclamou, aliás como toda a oposição, a mesma suspensão. Dado que 6 deputados do PS votaram favoravelmente a proposta, bastaria a presença de mais 22 votantes da oposição para que o PS sofresse um pesado revés. Esperemos que, quando regressarem de férias, algum dos faltosos não nos diga que não senhor, que tudo foi estrategicamente previsto para não oferecer ao adversário, de bandeja e sem ónus, a solução do conflito. É que a sobrevivência no lamaçal aguça o maquiavelismo.
Professor do ensino superior
PÚBLICO 10.12.2008
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