MAL OUVE QUEM MAL CUIDA
Vejo, que estão agora alguns no auditório mui contentes dizendo consigo
que isto não fala com êles, porque é verdade que não são mudos e que quando se acham
em conversação também falam nas vidas alheias, mas que não são homens que digam
o que imaginam, dizem o que ouvem e quem diz o que ouve, não mente. Ora estai
comigo. Se vós soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a boca até os
ouvidos, não houvéreis de dizer isso, ainda que fôreis mui verdadeiros.
Quero-vos pôr o exemplo na melhor bôca e nos melhores ouvidos do mundo.
Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser de S. João. Respondeu o Senhor:
Quero que fique assim. Isto é o que Cristo disse. E os Apóstolos que disseram?
Começaram a dizer uns com os outros que S. João não havia de morrer. E
acrescenta o Evangelista: E Cristo não disse que êle não havia de morrer, senão
que queria que ficasse assim. Pois se Cristo o não disse, como o disseram os
Apóstolos?
Êles é certo que não quiseram dizer uma coisa por outra, mas desde a bôca
aos ouvidos são tantas as voltas, que dão as palavras ou no que soam ou no que
significam, que o que na bôca de Cristo é ficar, nos ouvidos dos Apóstolos é
não morrer . Não podia haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores
ouvidos que os dois Apóstolos, e se entre o dizer de tal boca e o perceber de
tais ouvidos sucedem estas contradições, que será quando a boca não é de Cristo
e quando os ouvidos não são de S. Pedro nem de S. João?
Quantas vezes vos disseram uma coisa e percebestes outra? Quantas vezes
ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a boca do outro e os nossos ouvidos
ficou a honra alheia pendurada por um fio? E queira Deus que não ficasse
enforcada. Isto acontece, quando os homens ouvem com os ouvidos, mas quando
ouvem com os corações, ainda é muito pior. E os corações também ouvem? Nunca
vistes corações? Os corações também têm orelhas; e estai certos que cada um
ouve, não con- forme tem os ouvidos, senão conforme tem o coração e a
inclinação.
(Sermão da Quinta Dominga da Quaresma. Maranhão. 1654)
in VIEIRA TRECHOS
ESCOLHIDOS,
Livraria AGIR Editora, Rio de Janeiro, 1971
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