segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

OPINIÃO > Santana Castilho: «Portugal de cócoras»

Sinto-me soçobrado como nunca me senti. Olho para dentro e para fora para tentar compreender. Do olhar para dentro reservo as leituras, naturalmente. Do olhar para fora partilho convosco as perplexidades.

O acto final do Tratado de Lisboa reconduziu-me à Estratégia de Lisboa. Lembram-se da Estratégia de Lisboa? Lembramo-nos de poucas coisas. Esquecemo-nos rapidamente de muitas coisas. É a isto que nos conduz a efemeridade que os tempos modernos cultivam.

Os dirigentes da Europa reuniram-se em Lisboa, em Março de 2000, e definiram vários objectivos a serem atingidos até 2010, visando tornar a Europa na realidade económica mais competitiva do mundo. A educação e a formação ocupavam boa parte dos propósitos. Chegados ao momento da verdade, 2010 está aí, tudo falhado. Desolador! Palavras, propósitos atrás de propósitos incumpridos. E que propósitos são os da geração que governa? Tudo orientar para conseguir uma comunidade económica mais competitiva? Onde fica o homem integral? Para que serve a Escola? Para preparar pessoas ou simples instrumentos de uma economia global, desumanizada, injusta, egoísta, que nem os seus miseráveis propósitos, meramente instrumentais e consumistas, consegue realizar? Que independência é a nossa? Quem comanda os destinos do nosso sistema de ensino? Agências económicas globais, orientadas para resultados económicos, que desprezam as pessoas.

Portugal não define as suas políticas educativas. Portugal está de cócoras frente aos senhores do dinheiro. Não está só, é certo. O fenómeno repete-se, globalizado, nas sociedades do chamado Ocidente desenvolvido. Mas os nossos filhos e netos nascem aqui e são eles que nos importam, antes dos outros. São eles que vemos arrastar, ano após ano, sem futuro, manipulados por quem lhes diz que se devem predispor para servir uma sociedade de mercado mais competitiva, que os torna infelizes como pessoas e lhes oferece a emigração como alternativa. Formação ao longo da vida, formação em cima de formação? Para quê? Para que as pessoas compreendam melhor o universo que as rodeia? Para apurarem a sensibilidade como humanos? Para apreciarem a beleza do que resta? Para aprenderem a ser solidários? Não! Para responderem às solicitações do dinheiro. Quem é a OCDE para perorar sobre o processo formativo dos nossos filhos? Que sabe ela de pessoas autónomas? Sabe de pessoas servis. Julga saber de números e fala do êxito na ponta de resultados sem significado, como se a felicidade dos povos fosse da exclusiva dependência da produtividade de quem trabalha. E a produtividade do capital? E a produtividade de quem manda, dos empresários e dos políticos? Ciclo após ciclo falhado, o discurso retorna inevitável, como agora: diminuir salários e aumentar impostos. Os mesmos que erraram continuam nos postos e os arautos das soluções não lhes pedem contas. Branqueiam a incompetência com o pragmatismo de quem está bem e passa bem sobre os sacrifícios dos outros.

Os dados esmagam: 146 mil licenciados, pagos por todos nós e formados nas nossas universidades, demandaram o estrangeiro e fazem parte dos 15 por cento dos portugueses mais qualificados que tiveram que ir viver lá para fora. Dito doutro modo, em cada mês que passa, 100 portugueses licenciados compram bilhete sem regresso, para se furtarem ao número aterrador dos 44.700 colegas que sobrevivem a fazer trocos nas caixas registadoras ou a debitar cassetes nos call centers. Será que os arautos da formação ao longo da vida mantêm a lata de considerar a educação e a formação como “elementos-chave da renovada agenda social para as oportunidades, acesso e solidariedade”? De que falam? De que oportunidades? De que agenda social?

Tenho soluções para a Escola, que não é esta Escola. Não tenho soluções para o país, mas sei que por aqui nos afundamos. Sinto-me por isso a soçobrar, como nunca me senti. Precisamos de refundar a Escola e precisamos de refundar o regime e os partidos políticos. Precisamos de uma estratégia para o país. Se não puxarmos todos para o mesmo lado, iremos todos ao fundo.

O dinheiro não é mercadoria, mas encaram-no como tal, num frenesim de busca de lucro fácil, servido pela liberalização selvagem que nos conduziu à crise imensa que arrastou tudo e todos. Porque ultrapassámos há muito o meio milhão de desempregados, porque é evidente que mais formação não resolve o problema de quem tem fome e não tem trabalho, olhemos antes para as desigualdades e para a exploração que cresceram exponencialmente nos últimos anos. Não são pobres apenas os velhos e os que não têm trabalho. São pobres, também, os 140 mil assalariados que recebem menos de 310 euros mensais e quase metade dos trabalhadores por conta de outrem, que se ficam abaixo dos 600 euros. A santíssima OCDE bem nos lembra que em todos os países que a compõem apenas a Turquia e o México nos superam. Termos em que é tempo de reconhecer que o problema não é de mais formação. A grande causa da nossa fragilidade reside na desigualdade social e económica entre os cidadãos. Sem a diminuir não teremos maior número de bens tangíveis a preços competitivos vendidos no estrangeiro. Sem a diminuir não conseguiremos os consensos sociais indispensáveis ao aumento da produtividade. Sem substituir políticas e políticos soçobramos. É tempo de acordar e agir.

Professor do ensino superior. s.castilho@netcabo.pt

Fonte: PÚBLICO [09.12.2009]

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