segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Bispo católico vence Prémio Pessoa 2009

Manuel Clemente, em nome do humanismo e do combate à exclusão

Por António Marujo

É um excelente contador de histórias. Foi o primeiro bispo católico português a publicar uma mensagem no YouTube. O escolhido para Prémio Pessoa 2009 é o bispo do Porto, Manuel Clemente. Uma “referência ética”, diz o júri, com uma intervenção cívica onde se destaca a defesa do diálogo e da tolerância

O bispo do Porto foi o escolhido para Prémio Pessoa 2009. O júri do galardão destacou que, “em tempos difíceis como os que vivemos actualmente, D. Manuel Clemente é uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo”. Mas há mais, de acordo com o texto da acta do júri: “A sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, do combate à exclusão e da intervenção social da Igreja.”

Iniciativa do jornal Expresso e da Caixa Geral de Depósitos, o prémio no valor de 60 mil euros foi anunciado ontem, ao final da manhã, em conferência de imprensa no Palácio de Seteais, em Sintra. O júri destacou ainda que, “ao mesmo tempo que leva a cabo a sua missão pastoral, D. Manuel Clemente desenvolve uma intensa actividade cultural de estudo e debate público”.

O escolhido reagiu “com grande surpresa” à atribuição. Agora sente-se com “uma responsabilização ainda maior”, disse depois D. Manuel aos jornalistas, em Gaia. Considerando “não ser merecedor de um galardão como este”, acrescentou que não decidiu ainda o que irá fazer ao dinheiro. “Depois terei tempo para pensar nisso.”

“Eu sou o que vou conseguindo ser”, disse ainda o bispo do Porto. “Sou um homem de Igreja, também tento ser um homem da cultura e da sociedade no sentido mais construtivo do termo e isto agora ainda me responsabiliza para ser mais”, admitiu. É a primeira vez que o Prémio Pessoa distingue uma figura da hierarquia católica.

Um bispo como Prémio Pessoa não soa estranho? Nascido a 16 de Julho de 1948 em Torres Vedras, padre desde 1979, licenciado em História e doutorado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, Manuel Clemente é, aos 61 anos, um bispo dos sete instrumentos.

Autor de vasta produção bibliográfica enquanto historiador e observador da cultura portuguesa, Clemente é também um homem profundamente atento às artes, solicitado como conferencista por muitos sectores eclesiais e sociais, dinamizador da “Missão 2010” da diocese do Porto, onde é bispo desde Março de 2007 (depois de ter sido bispo auxiliar de Lisboa entre Janeiro de 2000 e Março de 2007). Na Conferência Episcopal Portuguesa foi o responsável pelo aparecimento da Comissão Episcopal para a Cultura (CEC), [a] que preside desde 2005.

Entre as três dezenas de obras que publicou, os últimos títulos, saídos no espaço de um ano, são uma boa síntese das suas preocupações: Portugal e os Portugueses (ed. Assírio & Alvim) recolhe vários ensaios sobre a cultura do país e acerca do fenómeno religioso; 1810 - 1910 - 2010, Datas e Desafios (idem) trata a relação do cristianismo com a política e a laicidade, debate questões como milenarismos e fundamentalismos e o diálogo entre a Igreja e a cultura.

Este tema domina a terceira obra, Um Só Propósito ― Homilias e Escritos Pastorais (ed. Pedra Angular), onde o autor também trata questões relacionadas com a intervenção da Igreja na sociedade e com a evangelização. A intervenção social, destacada pelo júri, está também presente nos livros e em várias posições públicas ― sobre o emprego, a crise económica ou o papel dos cristãos na solidariedade com os mais pobres.

Mensagem no YouTube

Excelente conversador e contador de histórias, homem que se adapta com facilidade a muitos palcos, Manuel Clemente tanto explica a liturgia católica semanalmente em programas de rádio (na Renascença, aos domingos de manhã) como conta a história da Igreja na televisão (programa Fé dos Homens, na RTP2, às quintas).

É capaz também de falar nas jornadas parlamentares do PSD sobre os desafios sociais do país, de reflectir sobre a poesia e a literatura, acerca do cinema de Manoel de Oliveira ou sobre a abordagem das novas tecnologias pela Igreja Católica. Foi, aliás, o primeiro bispo católico português a publicar uma mensagem no YouTube, no Natal do ano passado. E, através da CEC, dinamizou o Prémio Manuel Antunes, para distinguir personalidades que se destacam no diálogo entre fé e cultura.

Há ano e meio, na atribuição do prémio à professora universitária de Estudos Clássicos Maria Helena Rocha Pereira, o bispo alertava precisamente para o “insuficiente investimento” que se faz na cultura e no humanismo.

A relação com a cultura está presente nos livros ou nas actividades em que participa o bispo-historiador. “Assumo uma ideia de António José Saraiva, nas Reflexões sobre a Cultura Portuguesa, quando nos compara a um fruto de polpa macia e caroço duro”, dizia, em entrevista ao Ípsilon, em Setembro último. “Somos capazes de absorver tudo à volta, mas temos cá dentro uma acumulação de gerações, povos ― isto foi sempre o fim do mundo, antes de ser o início de outro. Tudo aqui sedimentou. O que nos define é essa capacidade de absorver sem deixarmos de sermos nós.”

“Tanta gente em tão pouco espaço só pode espraiar-se numa geografia universal”, escreve em Portugal e os Portugueses, cujo primeiro ensaio é uma brilhante e original incursão por alguns factores de identidade nacional.

Na entrevista ao Ípsilon, o bispo do Porto dizia que a desmesura é o factor que nos explica enquanto portugueses: “Um povo que teria um milhão de habitantes no princípio do século XVI, com cem mil homens disponíveis, que vai deste canto da Europa até à quarta parte nova ― o Brasil, depois a Ásia ―, é uma coisa tão desmesurada que fica sempre o sentimento de que somos gente especial. Por que nos calhou a nós? A argumentação geográfica ― estamos numa ponta da Europa ― não esvazia o sentimento de que há uma desmesura que nos explica.”

As reacções ao anúncio de ontem foram muitas e de diferentes sectores. Membros do júri explicaram as razões da escolha. O antigo Presidente da República Mário Soares, por exemplo: “Como toda a gente sabe, sou agnóstico, não sou católico nem pertenço a nenhuma religião, mas não tive a menor dúvida em votar a favor desta deliberação.”

Soares destacou ainda que D. Manuel Clemente é uma figura de grande abertura de espírito e sobretudo “um homem de diálogo”. E acrescentou: “É uma figura relevante para o nosso país. Independentemente de ser bispo e de ser uma grande figura da Igreja portuguesa, é um grande português.”

A cientista Maria de Sousa, que se afirma também como agnóstica, acrescentou: “Num ano, num tempo, num país em que a pobreza e a fome são realidades, [este prémio] revela que nem só de pão vive o homem.”

Citado pela Lusa, o Presidente da República considerou “de toda a justiça” a atribuição do Pessoa 2009 ao bispo do Porto. D. Manuel Clemente é “um homem extraordinário”, pelo qual Aníbal Cavaco Silva tem “uma elevadíssima consideração”.

Os presidentes da Câmara do Porto, da Associação Comercial do Porto e da Conferência Episcopal Portuguesa manifestaram também o seu contentamento pelo nome escolhido. A Igreja Católica em Portugal deve “sentir-se orgulhosa” pelo “reconhecimento público do mérito, do trabalho, competência e honestidade intelectual” de Manuel Clemente, disse o arcebispo de Braga e presidente da CEP, D. Jorge Ortiga, citado pela Ecclesia.

O director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, José Tolentino Mendonça ― cuja comissão episcopal é tutelada por D. Manuel ―, afirmou que o bispo é “uma das grandes vozes e grandes testemunhos do nosso tempo, um intelectual com um dos percursos mais rigorosos do nosso tempo português”.

Em declarações ao P2, Tolentino Mendonça acrescentou: “D. Manuel Clemente tem uma profunda capacidade de interpretar a história e encontrar nela sulcos de grande significado para o presente. E revela um traço próprio de um grande homem de cultura, que é a sua extraordinária simplicidade.”

O Prémio Pessoa foi recebido, na sua primeira edição (1987), por outro historiador: José Mattoso. Entre a lista dos galardoados estão também a pianista Maria João Pires (1989), o escritor José Cardoso Pires (1997), o arquitecto Souto Moura (1998), o investigador Sobrinho Simões (2002) e o constitucionalista Gomes Canotilho (2003). Em 2008, o prémio foi entregue ao arquitecto Carrilho da Graça.

Além de Pinto Balsemão, Soares e Maria de Sousa, o júri foi constituído ainda por Fernando Faria de Oliveira, António Barreto, José Fraústo da Silva, João Lobo Antunes, José Luís Porfírio, Miguel Veiga, Rui Magalhães Baião e Rui Vieira Nery. Com Isabel Coutinho e Abel Coentrão

Fonte: PÚBLICO [12.12.2009]

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